Este é o blogue de um espectáculo de teatro. É importante retê-lo porque a necessidade de o fazer se prende à utilidade particular a que se destina: na espuma dos dias o que é essencial vai-se como isso mesmo, espuma. E Letra M fala da vida, da criatura humana, porque fala da inevitabilidade do fim da vida, de como é irremediável a morte.
O espectáculo debruça-se sobre um desejo de eternidade utópico que persegue o homem desde os primórdios da razão. Mas não o faz no plano de uma ambição de rivalizar com os deuses ou com Deus. Fá-lo no plano do amor, de um desejo de viver o amor como um absoluto, de uma vontade de racionalidade fundada na fraternidade e na alegria, essas qualidades que se provam como reais e que a vida também pode conter, por estranho que o pareça nas circunstâncias actuais, imersos na destruição, na fome, na miséria e pior ainda, nos países ditos civilizados, na pior das venalidades e corrupção generalizados.
Letra M pretende fazer o que o texto que dá lugar à representação propõe: um debate de argumentos, uma luta de ideias, um combate por perspectivas válidas fundado nas possibilidades perscrutadas e válidas do humano, da humanidade livre potencial. É essa a proposta que vos fazemos: bloguem connosco sobre as matérias que a peça propõe. São vitais e mesmo vindas de um remoto 1401, altura da sua escrita, nunca gritaram tão alto as suas verdades. O que não está na ordem do dia. Falo das verdades e da Verdade, esse fenómeno que as camadas de realidade ocultam como um ouro que se não alcança. Já Brecht falava das cinco dificuldades de a dizer, à verdade, risco de vida fazê-lo, num tempo em que ela parece impossível e a mentira rende o que a verdade impede e dói, avessa ao lucro explorador e brutal.
Lucremos com as ideias que nos propõe Saaz, pensamento em acção emergindo no fogo da luta. Sigamos Saaz, esse humanista antes do tempo, desafiador do Deus único, ausência inatingível. Tentemo-las aqui, às ideias carregadas de dúvida e propósitos futuros, e a partir do modelo do diálogo, um diálogo de monólogos contrapostos.
É isso: querem contracenar connosco os vossos monólogos críticos e fraternos?


Fernando Mora Ramos


<a href="http://slideful.com/v20090923_1835888836085203_fp.htm">View the slide show</a>

8 de fevereiro de 2010

Olá

0 comentários
Até ao próximo sábado, inclusivé, estou (eu e o Paulo Calatré) a fazer
(representar), no exactíssimo local onde foram julgadas centenas de pessoas
e queimadas outras tantas (ou muitas mais... no Mosteiro de S. Bento da
Vitória, no Porto, no coração da antiga judiaria), um espectáculo chamado
LETRA M.
 
http://www.tnsj.pt/home/espetaculo.php?intShowID=195
 
Se puderem, quiserem, etc, lhes apetecer, estiverem para aí virados, vão
ver. Não é nada de especial. Nem por nada. É só um espectáculo. É também,
coincidente e dramaticamente, o último acto performativo do pintor João
Vieira, cenógrafo da coisa, e falecido entretanto (já não viu o
espectáculo, aliás). Vive apoiado numa espécie de instalação sonora do Carlos AAugusto,
foi encenado pelo Fernando Mora Ramos e construído entre Agosto e Outubro
do ano passado, nas Caldas da Rainha, enquanto os camaradas da ETA tratavam de
montar uma fábrica de explosivos (e uma célula) ali mesmo ao lado. Mas eu
juro que não estou envolvido. Embora pudesse.
 
Et voilà.
 
Se não nos virmos entretanto, bom sol.
 
antonioduraes

21 de janeiro de 2010

Fizemos o que quisemos

0 comentários

Eu e o João Vieira fizemos o que quisemos: um espaço que fundisse uma “impossibilidade”, circo romano e parlamento, arena e tribunal democrático, “espectáculo” da precariedade humana e lei da vida num confronto desigual, mas sempre tentativa de equilibrar os enfrentares por vir, de os deixar abertos ao entendimento das motivações e causas. Para quem entra no Espaço, quisemos que estivesse numa situação equilibrada, perto mas também em posição de clarividência na escuta, essa dupla missão de ver e ouvir. O que nesta representação se faz do lado de lá, no Palácio fabril da Morte. Somos seus convidados. Este foi o último cenário do cenógrafo. Foi uma aventura longa e precisa, durou dois anos. Feita de pausas e arranques. E como o João diz, chegando ao fim, chegámos, pelo menos, a uma nova pausa. Creio que é isso: uma pausa activa, em que dentro de nós laboram imagens e sensações que voltam sempre, mesmo que estejam algures num ponto impreciso da subjectividade retrospectiva e das emoções, memória presente, inevitável passado a espalhar a sua luz e os seus enigmas, as suas arestas e dores. Um magnífico cenário, a meu ver. Feito com muito pouco e feito também por um grande construtor, um príncipe do palco.

Fernando Mora Ramos


Excerto de “O Cenário”. In Letra M: [Programa]. Porto: Teatro Nacional São João, 2009. p. 15.

Letra M no Teatro Nacional de São João

0 comentários

Da antiga lavandaria do Hospital Termal das Caldas da Rainha para o claustro do Mosteiro de São Bento da Vitória, Letra M faz o seu caminho por espaços ditos “não convencionais”, os únicos capazes de conterem e funcionalizarem o dispositivo cénico e as pinturas de João Vieira, naquele que viria a ser o derradeiro acto performativo de um dos mais notáveis criadores portugueses das últimas décadas. Cultor de paradoxos, o encenador Fernando Mora Ramos fala-nos de um espectáculo “sem vocação para a morte”, isto porque nele quis centralmente reflectir sobre a “vida como desejo vital”. No interior do cenário concebido por João Vieira, lugar de arremesso de palavras e gestos, António Durães e Paulo Calatré trazem à presença dos espectadores O Lavrador da Boémia, de Johannes von Saaz, escrito em 1401 na sequência da morte da esposa amada. Texto iluminado em noite de trevas, este duro combate dialogado entre duas personagens – a Morte e o Lavrador – celebra a beleza da amada desaparecida na juventude da vida, contrariando assim, através da criação poética, o gesto destruidor da morte. Não será esse o papel da arte: tentar os impossíveis, rebelar-se contra a Grande Regra?

18 de janeiro de 2010

O Lavrador da Boémia e a Morte

0 comentários

8 de janeiro de 2010

1 comentários
Faltará, mais ou menos, um mês, para reencontrar os caminhos das Caldas da Rainha, na cidade do Porto; a Lavandaria do Hospital Termal, no Convento de S. Bento da Vitória. Um mês para, ora reagindo ora agindo com o Paulo, reorganizar os passos sobre o arame que descobrimos na escrita de Saaz.
Suster aqui e ali a respiração para um mergulho mais profundo, preparado; insuflar a cara e o coração com o sopro das coisas a dizer; desfrutar dos silêncios como alimento essencial para as palavras seguintes. As asas abertas à procura do equilíbrio de pinguim, na cripta mais alta.

Recomecei a olhar para texto.

Entre as filhoses e as rabanadas, o bacalhau e o perú. Não já como se da primeira vez se tratasse, isso seria impossível, doentio até, mas como se tudo fosse matéria para nova investigação, dossiê reaberto à procura de novas evidências, mas também das conhecidas emoções (ai, se fosse possível recrear emoções como quem diz palavras - palavras palavras palavras...).
Tornar a verter, agora com um pouco mais de calma e de organização científica, o ácido que as limpa de todas as corrosões. E lá por baixo, imagine-se, depois de calcorreadas em trote e em galope tantas vezes, descobrir por baixo delas, das conhecidas e já habitadas palavras, outros possíveis sentidos, como que mantidos secretos.

Tento guardar uns e sacudir outros. Peso-lhes as possibilidades. Uso a balança das mãos, na esquerda isto, na direita aquilo, os pratos em suspenso, e o coração, como fiel da balança, que decida.

Há uma certa poeira à volta de mim, como se as palavras tivessem pó e fossem agora empoeirar as coisas por onde passo.

Relembro as indicações recebidas há uns meses, integro-as novamente no discurso que agora faço, contorço-me aqui e ali, artista de circo mas pouco, torno a não perceber esta ou aquela passagem, pergunto-me “que quer isto dizer, que já não lhe reconheço o perfil?”, volto a investigar, contradito-me noutros tantos momentos como quem se descobre completamente amador da coisa representada, “onde é que eu estava com a cabeça?”, procuro o conforto do olhar que confere um sentido (mesmo que torcido) aqui e ali, remonto os passos da dança, um dois três, um dois três, pirueta.

Há coisas diferentes, espanto-me. E espanto-me sempre, mesmo quando sei que me vou espantar.

Quem mudou neste lapso de tempo? Nestes dois meses de separação?

As palavras, não, que são as mesmas.

Só posso ter sido eu a mudar. Não se sabe ao certo quantos centímetros, nem para onde, nem em direcção a quê. Mas mudei.

Gosto de pensar que cresci.

As reposições têm este encanto para mim. Para lá do terror, pois, por me ter de confrontar com as velhas palavras, as conhecidas situações, os caminhos trilhados, e fazer de coisa vivida, coisa por viver (dê-se o devido desconto a este “viver” assim apresentado, sem sobrenome, nem nada), o acto de tornar ao espectáculo pré-feito tem essa magia de me dizer o quanto medrei nesse intervalo de tempo. O que agora penso, em confronto com o que outrora pensei.

Não posso dizer que seja um actor (um cidadão) de pensamento estabilizado.
Tenho quase cinquenta anos e, contudo, sou volátil como uma árvore magra (há quanto tempo e há quantos quilos isso já vai) sujeito à força do vento.
Sujeito do vento. Porque até eu, aspirante a actor, sou de vento. Não preciso de uma grande aragem para me contorcer, qual bailarino de movimentos simples, ora para um lado ora para o outro, os pés agarrados o chão para o que der e vier, o vento no cabelo, e por baixo dele, ou do que resta dele, a cabeça em viagem, menina e adolescente, cheia de perguntas e sem aspirar a mais nada, nem mesmo a respostas. Mesmo eu, sendo vento, me auto-contorço.

E contudo, sou o mesmo que, há dois meses, pensava uma coisa e que agora, não pensando o contrário do que pensou, pensa sobre muitas matérias coisas diferentes.

Alguns centímetros de diferença. Coisa pouca. Quase nada. E, contido, quase tanto.

António Durães

28 de outubro de 2009

Obrigado

0 comentários
Fernando, obrigado pelo texto e sobretudo pelo espectáculo. Afrontar a morte quase nunca vai bem com o ofício de ser português mas isso acontece-nos por vezes com alguma gente com alguma escrita (o Herberto: «…ficar certo com a vírgula no meio da luz…») e acontece-nos com o teu teatro certo. A «vitória» dos ouropéis e homilias de «quem castiga bem aconselha bem» já a sabemos resta-nos a «honra» de os mandar à merda. Tudo vai certo o espaço e a fala as belas pinturas a inteligência: fui bem-vindo às Caldas. Adorei a morte em ataque cardíaco.

Um abraço,
Jorge Luz

17 de outubro de 2009

Curiosa descoincidência

1 comentários

Saaz e Vicente

No teatro aquilo que é acidental tem porventura muito de electivo – os acidentes repetem-se no mesmo território. Andamos muitas vezes pelas mesmas águas e reparamos, a dada altura da nossa própria maturidade, que regressamos a temas, que há polémicas que vão reencontrando outro espaço e outro tempo para se afirmarem e que as coisas mudam mas também permanecem.

Se há história difícil de entender é a do corpo, história da sua evolução orgânica e das interdições associadas à sua natureza. O corpo, ao que parece, e as suas linguagens imediatas, corpo máquina, corpo erótico, corpo digestivo, corpo reprimido, mesmo numa altura em que está em causa a relação natural com o que é – da prótese ao automóvel, do computador à necessidade de exercícios para que o corpo seja corpo, tudo o converte numa espécie de corpo descorporificado, ou, nas paisagens do mercado, em super-corpo –, fazem as suas partidas inesperadas e talvez sejam as doenças fatais, as que permanecem sem cura (por muita medicina campeã que se premeie com mais ou menos indústria farmacêutica envolvida), as que traduzem a sua continuada e evidente precariedade.

Só mesmo no reino ofuscante da publicidade somos eternos e justamente no momento do consumo, no acto de consumir. Aí, com os dentes no chocolate, ou envergando a última T Shirt tatuada da moda, passamos a fronteira da nossa precariedade e entramos no universo perene das marcas – estas nunca afirmam nem origens, a não ser para encontrar uma remota nobreza original, nem o futuro, sempre mais radioso que as estrelas no firmamento de sempre. É esta a linguagem dominante associada ao corpo (a Igreja há muito que perdeu a guerra e ele há Virgens tão sensuais, tão capazes de conceber com pecado!).

O que nos dizem é que nós seremos cada vez mais jovens, mesmo que esse cada vez não aponte para um regresso ao berço e antes nos situe sempre numa espécie de idade da disponibilidade potencial erótica. Tudo muito envolvido em celofane cinético e em irrealidade etérea, mas cheia de primeiro plano, de hiper-realidade. A sexualidade, essa mesma, a que conhecemos de toque, mãos e o que mais for, convoca sempre humidades, cheiros e uma poesia muito própria, a poesia imperfeita do próprio corpo associado também, e isso é uma verdade extraordinária, às suas limitações ou liberdades culturais. Nada nos é dito sobre o corpo detrás da burka e quando o juízo que se lhe dirige o faz apenas à interdição, juízo do lado de cá, ele julga sumariamente o que não aprofunda. O que se passará sob o extenso véu, dos pés à cabeça, que seja radicalmente diferente do que sucede a quem o expõe? O que sabemos é que o excesso de exposição deserotiza, remete para a esfera do etéreo o que é suado e intenso, fala da “essência” da coisa e não da “indecência” – esses perfumes que matam o desejo com a sua química kitsch ingramável, o pinheirinho do taxista no espelho retrovisor a disfarçar o tabaco omnipresente -, síntese estilizada da coisa, e não do odor da coisa, de como ela é sendo o que é, com o disfarce primário da coisa em si despida de teorias mas plena de literatura literal. E é aí que a indústria, a quem todas as formas de impotência interessam, como interessam todas as formas da potência, entra. E entra para acumular lucros. O lucro, o mercado, quer multiplicar a libido por uma infinidade de possibilidades de com ela lucrar deslibidinizando-nos e ultralibidinizando-nos no mesmo gesto, como um movimento irracional e absurdo – nada melhor para o mercado que a irracionalidade e o absurdo, as trevas e as seitas. As práticas do corpo a ele associadas vivem obviamente da insatisfação alimentada. É essa condição que move para o próximo acto e torna o negócio uma exploração de lógicas de dependência. O que era natural – e esta natureza já é a segunda, plena de fantasias, porque somos ficcionadores por natureza, corpo/cabeça – torna-se pura manipulação e dependência.

Mas não era por aqui que queria vir. O António Durães, actor notável, referindo-se no blogue de Letra M (espectáculo do Teatro da Rainha, com cenários e pinturas de João Vieira a partir de Saaz) a Gil Vicente e Saaz, ao Breve sumário da história de Deus e ao Lavrador da Boémia, repara nesta coisa extraordinária: em Vicente, Eva comendo o fruto cai em pecado e condena-nos à vida como ela é em resultado de ao fazê-lo ter parido a maléfica Morte, essa personagem do Mal. O que tem uma forte carga imagética e simbólica associada e cria, imagens convocadas pelas palavras, uma fantasmagoria monstruosa associada ao próprio parto da Morte, imaginável apenas como cena mítica, violenta e incompreensível apesar de toda a ingenuidade que a suporta, ingenuidade mesmo no sentido pictórico. Já em Saaz, autor boémio – não confundir com copos e noitadas – do século XV e grande clássico da literatura germânica, a Morte, sendo personagem, é concebida como função, como instrumento da ordem de Deus.

Esta diferença diz tudo sobre as mentalidades respectivas: se em Vicente, que é um conhecedor profundo da teologia da época, a imagem remete para uma espécie de ainda infância do acto de imaginar submetida a uma hierarquia inamovível, no autor germânico já estamos em plena polémica. Se a Morte é negativa e é instrumento de Deus, se é pura destruição como pode ser ela instrumento de Deus? Será instrumento de um Deus que com ela se confunde, de um Deus de Morte. E o facto de abrir a polémica diz tudo, diz tudo da propensão de uma cultura para o rito repetidor e sagrado e de outra para a razão polémica, para a possibilidade da iconoclastia, salutar e libertadora, vanguardista. Pois é, há constantes na cultura que passando o nosso tempo de vida, falarão do mesmo, da propensão de uns para o respeito hierárquico – e o que é o “ambiente salazarento” que vivemos? -, e de outros para o pensamento, o debate vital, lá onde a modernidade começou a sua actualidade ainda presente.

Fernando Mora Ramos




 


Informações e Reservas: 262 823 302__966 186 871 ___geral@teatro-da-rainha.com