Faltará, mais ou menos, um mês, para reencontrar os caminhos das Caldas da Rainha, na cidade do Porto; a Lavandaria do Hospital Termal, no Convento de S. Bento da Vitória. Um mês para, ora reagindo ora agindo com o Paulo, reorganizar os passos sobre o arame que descobrimos na escrita de Saaz.
Suster aqui e ali a respiração para um mergulho mais profundo, preparado; insuflar a cara e o coração com o sopro das coisas a dizer; desfrutar dos silêncios como alimento essencial para as palavras seguintes. As asas abertas à procura do equilíbrio de pinguim, na cripta mais alta.
Recomecei a olhar para texto.
Entre as filhoses e as rabanadas, o bacalhau e o perú. Não já como se da primeira vez se tratasse, isso seria impossível, doentio até, mas como se tudo fosse matéria para nova investigação, dossiê reaberto à procura de novas evidências, mas também das conhecidas emoções (ai, se fosse possível recrear emoções como quem diz palavras - palavras palavras palavras...).
Tornar a verter, agora com um pouco mais de calma e de organização científica, o ácido que as limpa de todas as corrosões. E lá por baixo, imagine-se, depois de calcorreadas em trote e em galope tantas vezes, descobrir por baixo delas, das conhecidas e já habitadas palavras, outros possíveis sentidos, como que mantidos secretos.
Tento guardar uns e sacudir outros. Peso-lhes as possibilidades. Uso a balança das mãos, na esquerda isto, na direita aquilo, os pratos em suspenso, e o coração, como fiel da balança, que decida.
Há uma certa poeira à volta de mim, como se as palavras tivessem pó e fossem agora empoeirar as coisas por onde passo.
Relembro as indicações recebidas há uns meses, integro-as novamente no discurso que agora faço, contorço-me aqui e ali, artista de circo mas pouco, torno a não perceber esta ou aquela passagem, pergunto-me “que quer isto dizer, que já não lhe reconheço o perfil?”, volto a investigar, contradito-me noutros tantos momentos como quem se descobre completamente amador da coisa representada, “onde é que eu estava com a cabeça?”, procuro o conforto do olhar que confere um sentido (mesmo que torcido) aqui e ali, remonto os passos da dança, um dois três, um dois três, pirueta.
Há coisas diferentes, espanto-me. E espanto-me sempre, mesmo quando sei que me vou espantar.
Quem mudou neste lapso de tempo? Nestes dois meses de separação?
As palavras, não, que são as mesmas.
Só posso ter sido eu a mudar. Não se sabe ao certo quantos centímetros, nem para onde, nem em direcção a quê. Mas mudei.
Gosto de pensar que cresci.
As reposições têm este encanto para mim. Para lá do terror, pois, por me ter de confrontar com as velhas palavras, as conhecidas situações, os caminhos trilhados, e fazer de coisa vivida, coisa por viver (dê-se o devido desconto a este “viver” assim apresentado, sem sobrenome, nem nada), o acto de tornar ao espectáculo pré-feito tem essa magia de me dizer o quanto medrei nesse intervalo de tempo. O que agora penso, em confronto com o que outrora pensei.
Não posso dizer que seja um actor (um cidadão) de pensamento estabilizado.
Tenho quase cinquenta anos e, contudo, sou volátil como uma árvore magra (há quanto tempo e há quantos quilos isso já vai) sujeito à força do vento.
Sujeito do vento. Porque até eu, aspirante a actor, sou de vento. Não preciso de uma grande aragem para me contorcer, qual bailarino de movimentos simples, ora para um lado ora para o outro, os pés agarrados o chão para o que der e vier, o vento no cabelo, e por baixo dele, ou do que resta dele, a cabeça em viagem, menina e adolescente, cheia de perguntas e sem aspirar a mais nada, nem mesmo a respostas. Mesmo eu, sendo vento, me auto-contorço.
E contudo, sou o mesmo que, há dois meses, pensava uma coisa e que agora, não pensando o contrário do que pensou, pensa sobre muitas matérias coisas diferentes.
Alguns centímetros de diferença. Coisa pouca. Quase nada. E, contido, quase tanto.
António Durães