Um abraço,
Jorge Luz
Este é o blogue de um espectáculo de teatro. É importante retê-lo porque a necessidade de o fazer se prende à utilidade particular a que se destina: na espuma dos dias o que é essencial vai-se como isso mesmo, espuma. E Letra M fala da vida, da criatura humana, porque fala da inevitabilidade do fim da vida, de como é irremediável a morte.
O espectáculo debruça-se sobre um desejo de eternidade utópico que persegue o homem desde os primórdios da razão. Mas não o faz no plano de uma ambição de rivalizar com os deuses ou com Deus. Fá-lo no plano do amor, de um desejo de viver o amor como um absoluto, de uma vontade de racionalidade fundada na fraternidade e na alegria, essas qualidades que se provam como reais e que a vida também pode conter, por estranho que o pareça nas circunstâncias actuais, imersos na destruição, na fome, na miséria e pior ainda, nos países ditos civilizados, na pior das venalidades e corrupção generalizados.
Letra M pretende fazer o que o texto que dá lugar à representação propõe: um debate de argumentos, uma luta de ideias, um combate por perspectivas válidas fundado nas possibilidades perscrutadas e válidas do humano, da humanidade livre potencial. É essa a proposta que vos fazemos: bloguem connosco sobre as matérias que a peça propõe. São vitais e mesmo vindas de um remoto 1401, altura da sua escrita, nunca gritaram tão alto as suas verdades. O que não está na ordem do dia. Falo das verdades e da Verdade, esse fenómeno que as camadas de realidade ocultam como um ouro que se não alcança. Já Brecht falava das cinco dificuldades de a dizer, à verdade, risco de vida fazê-lo, num tempo em que ela parece impossível e a mentira rende o que a verdade impede e dói, avessa ao lucro explorador e brutal.
Lucremos com as ideias que nos propõe Saaz, pensamento em acção emergindo no fogo da luta. Sigamos Saaz, esse humanista antes do tempo, desafiador do Deus único, ausência inatingível. Tentemo-las aqui, às ideias carregadas de dúvida e propósitos futuros, e a partir do modelo do diálogo, um diálogo de monólogos contrapostos.
É isso: querem contracenar connosco os vossos monólogos críticos e fraternos?
Saaz e Vicente
No teatro aquilo que é acidental tem porventura muito de electivo – os acidentes repetem-se no mesmo território. Andamos muitas vezes pelas mesmas águas e reparamos, a dada altura da nossa própria maturidade, que regressamos a temas, que há polémicas que vão reencontrando outro espaço e outro tempo para se afirmarem e que as coisas mudam mas também permanecem.
Se há história difícil de entender é a do corpo, história da sua evolução orgânica e das interdições associadas à sua natureza. O corpo, ao que parece, e as suas linguagens imediatas, corpo máquina, corpo erótico, corpo digestivo, corpo reprimido, mesmo numa altura em que está em causa a relação natural com o que é – da prótese ao automóvel, do computador à necessidade de exercícios para que o corpo seja corpo, tudo o converte numa espécie de corpo descorporificado, ou, nas paisagens do mercado, em super-corpo –, fazem as suas partidas inesperadas e talvez sejam as doenças fatais, as que permanecem sem cura (por muita medicina campeã que se premeie com mais ou menos indústria farmacêutica envolvida), as que traduzem a sua continuada e evidente precariedade.
Só mesmo no reino ofuscante da publicidade somos eternos e justamente no momento do consumo, no acto de consumir. Aí, com os dentes no chocolate, ou envergando a última T Shirt tatuada da moda, passamos a fronteira da nossa precariedade e entramos no universo perene das marcas – estas nunca afirmam nem origens, a não ser para encontrar uma remota nobreza original, nem o futuro, sempre mais radioso que as estrelas no firmamento de sempre. É esta a linguagem dominante associada ao corpo (a Igreja há muito que perdeu a guerra e ele há Virgens tão sensuais, tão capazes de conceber com pecado!).
O que nos dizem é que nós seremos cada vez mais jovens, mesmo que esse cada vez não aponte para um regresso ao berço e antes nos situe sempre numa espécie de idade da disponibilidade potencial erótica. Tudo muito envolvido em celofane cinético e em irrealidade etérea, mas cheia de primeiro plano, de hiper-realidade. A sexualidade, essa mesma, a que conhecemos de toque, mãos e o que mais for, convoca sempre humidades, cheiros e uma poesia muito própria, a poesia imperfeita do próprio corpo associado também, e isso é uma verdade extraordinária, às suas limitações ou liberdades culturais. Nada nos é dito sobre o corpo detrás da burka e quando o juízo que se lhe dirige o faz apenas à interdição, juízo do lado de cá, ele julga sumariamente o que não aprofunda. O que se passará sob o extenso véu, dos pés à cabeça, que seja radicalmente diferente do que sucede a quem o expõe? O que sabemos é que o excesso de exposição deserotiza, remete para a esfera do etéreo o que é suado e intenso, fala da “essência” da coisa e não da “indecência” – esses perfumes que matam o desejo com a sua química kitsch ingramável, o pinheirinho do taxista no espelho retrovisor a disfarçar o tabaco omnipresente -, síntese estilizada da coisa, e não do odor da coisa, de como ela é sendo o que é, com o disfarce primário da coisa em si despida de teorias mas plena de literatura literal. E é aí que a indústria, a quem todas as formas de impotência interessam, como interessam todas as formas da potência, entra. E entra para acumular lucros. O lucro, o mercado, quer multiplicar a libido por uma infinidade de possibilidades de com ela lucrar deslibidinizando-nos e ultralibidinizando-nos no mesmo gesto, como um movimento irracional e absurdo – nada melhor para o mercado que a irracionalidade e o absurdo, as trevas e as seitas. As práticas do corpo a ele associadas vivem obviamente da insatisfação alimentada. É essa condição que move para o próximo acto e torna o negócio uma exploração de lógicas de dependência. O que era natural – e esta natureza já é a segunda, plena de fantasias, porque somos ficcionadores por natureza, corpo/cabeça – torna-se pura manipulação e dependência.
Mas não era por aqui que queria vir. O António Durães, actor notável, referindo-se no blogue de Letra M (espectáculo do Teatro da Rainha, com cenários e pinturas de João Vieira a partir de Saaz) a Gil Vicente e Saaz, ao Breve sumário da história de Deus e ao Lavrador da Boémia, repara nesta coisa extraordinária: em Vicente, Eva comendo o fruto cai em pecado e condena-nos à vida como ela é em resultado de ao fazê-lo ter parido a maléfica Morte, essa personagem do Mal. O que tem uma forte carga imagética e simbólica associada e cria, imagens convocadas pelas palavras, uma fantasmagoria monstruosa associada ao próprio parto da Morte, imaginável apenas como cena mítica, violenta e incompreensível apesar de toda a ingenuidade que a suporta, ingenuidade mesmo no sentido pictórico. Já em Saaz, autor boémio – não confundir com copos e noitadas – do século XV e grande clássico da literatura germânica, a Morte, sendo personagem, é concebida como função, como instrumento da ordem de Deus.
Esta diferença diz tudo sobre as mentalidades respectivas: se em Vicente, que é um conhecedor profundo da teologia da época, a imagem remete para uma espécie de ainda infância do acto de imaginar submetida a uma hierarquia inamovível, no autor germânico já estamos em plena polémica. Se a Morte é negativa e é instrumento de Deus, se é pura destruição como pode ser ela instrumento de Deus? Será instrumento de um Deus que com ela se confunde, de um Deus de Morte. E o facto de abrir a polémica diz tudo, diz tudo da propensão de uma cultura para o rito repetidor e sagrado e de outra para a razão polémica, para a possibilidade da iconoclastia, salutar e libertadora, vanguardista. Pois é, há constantes na cultura que passando o nosso tempo de vida, falarão do mesmo, da propensão de uns para o respeito hierárquico – e o que é o “ambiente salazarento” que vivemos? -, e de outros para o pensamento, o debate vital, lá onde a modernidade começou a sua actualidade ainda presente.
Por curiosa coincidência, caprichos da vida, artística e por artisitificar, num texto (e num espectáculo em que estou igualmente envolvido) posterior quase um século a este de Sazz, Gil Vicente
Diz Eva ao Anjo:
Senhor sabereis
dizendo em soma o que me requereis
que eu concebi neste meu spirito
aqueles enganos do anjo maldito
e assi concebida agora vereis
o meu apetito
digo que prenhe minh'alma e vida
assi concebida do verbo corrupto
desejei de prenhe fartar-me do fruto
da árvore santa per Deos defendida.
E como comi
(Aqui aparece a Morte.)
vedes ali senhor que pari
vedes a minha triste paridura
essa é a filha da mãe sem ventura
isto naceu da triste de mi
por nossa tristura.
Em Sazz, há a pergunta que sabe a resposta:
Diz a Morte:
Perguntas-nos de onde vimos. Vimos do paraíso terrestre. Foi lá que Deus nos criou quando disse: no dia em que comerdes deste fruto, nesse dia morrereis.
Duas maneiras diferentes para, à luz do Deus da Bíblia, do Livro do Génesis, marcar o aparecimento da Morte na história da Vida. Com um século de diferença.
António Durães
Senhor, em toda a tua criação não há nada de mais terrificante, de mais vil, de mais injusto, de mais amargo do que a Morte.
Ela entristece, ela destrói todo o teu reino terrestre.
Deixa o que é nocivo, velho, doente, inútil e leva os bons, os que têm préstimo.
Julga, Senhor, julga este falso juiz.
a) a excelente escolha dos actores e a sua actuação;
b) o espaço denso - leve – TEATRO – em que o espaço sonoro suaviza como uma manto de veludo;
c) a relação espaço – actores e a sua projecção da palavra interiorizada – brotada com uma intensidade muito equilibrada em todas as suas projecções;
d) os níveis superior (janela, altar, bancada…) e inferior (poço interior e exterior) são sublinhados de uma leveza consistente, bem marcante…
e) a relação actor – actor, as peças móveis de afastamento físico em permanente dialogo, as palavras (TEATRO) e o silêncio, com direcções, olhares e expressões intensamente direccionados / ligados por um fino fio invisível impressionantemente resistente de contenção…
…isto são apontamento que tirei logo no fim, com isto vou fazer um pequeno texto, porque tenho que escrever sobre o que vi-ouvi-digeri- mais do que sentir…
Mais uma vez um GRANDA OBRIGADO pela passada noite de TEATRO de sexta-feira.
Acácio Carreira
Por momentos, sendo uma sala de tribunal – mesmo que não consiga vislumbrar que género de tribunal terá sido – a sala voltou a vibrar com os argumentos e contra-argumentos dos intervenientes, eu e o Paulo, que entregámos àquelas paredes, as reflexões que outrora lá terão sido produzidas, ainda para mais, sabendo-se aquele pedaço de edifício, incluído num complexo monástico.
Sentimo-nos, naquelas sessões, empurrados por tantas vozes que antes de nós se degladiaram, se combateram, até à sentença final.
E se aqui, na antiga Lavandaria, é Deus em Nuvem que fala, uma voz coada pelo amaciador do Carlos, passada a ferro pelo olhar do João, depois de devidamente passajada pelo Fernando, ali, no Porto, paredes meias com as famílias dos que, duas casas abaixo, esperavam na rua os resultados das audiências no TIC, sentimos as agulhas da concritude, do tudo ou nada.
António Durães
No confronto entre a Morte e o Lavrador, sou manifestamente seduzido pela Morte. A sua postura, o carácter implacável e a natureza inapelável dos seus argumentos seduzem-me bem mais que a lamechice do Lavrador.
Contudo eu sou o Lavrador, tornei-me Lavrador. Quis o acaso que me visse na condição deste Lavrador frágil e vulnerável durante a produção desta peça. Um lavrador feito Orfeu, que desceu e continua a descer ao reino de Hades em busca da sua Eurídice, na ilusão de que a poderá ainda trazer de volta. Um lavrador-Orfeu a tentar com diligência adormecer Hades, Caronte e Cérbero sem sucesso. Um lavrador-Orfeu que desafia também ele as proibições e olha para trás. Nada mais parece restar senão a memória. Mas, nada, a serpente deu mesmo um golpe fatal na minha bela Eurídice.
Entre as minhas idas e vindas ao Hades tentei encontrar ânimo para sonificar esta “Letra M”.
The show must go on e a tarefa é ingrata. Hades não se comove, Caronte não adormece e Cérbero continua atento ao meu mais simples gesto. Tentam mesmo apanhar-me nos seus conluios. São insensíveis ao meu design sonoro.
Valho-me do cenário. O cenário do João Vieira, também ele desaparecido durante a produção da peça, é uma máquina sonora de valor musical inusitado. A fazer lembrar, visual e acusticamente, as conhecidas estruturas sonoras dos irmãos Baschet.
Hades volta a intrometer-se quando penso por que outros caminhos este trabalho poderia ter-se metido. Estou certo que o João Vieira haveria de ter simpatizado com a ideia de os percorrermos juntos.
O som do cenário está presente, de uma forma ou de outra, de modo mais ou menos exuberante e exclusivo, em todas as intervenções sonoras que a peça contém.
Tente o espectador perceber onde começa e onde acaba o cenário desta “Letra M”. Onde jazem as fronteiras entre o visual e o acústico?
No futuro, se Hades permitir, iremos explorar as virtudes deste cenário feito de ferro, de aço e de poesia.
Carlos Alberto Augusto
Os actores são gente assim.
Os ministros da cultura não entendem, não percebem o que não é imediatamente perceptável, nem o que está para lá do lógico.
O Jorge Vasques, actor, saiu de cena este sábado, no Porto, depois de ter terminado o espectáculo que representava. Quase no momento real do fade out que sobre si incidia.
Conta quem assistiu ao último espectáculo que representava no Teatro Helena Sá e Costa que, estranhamente, o Jorge não deixara que o pulsar daquela última luz, já só reflexão da luz derradeira, luz rebatida pelo chão, terminasse da sua explosão sobre si e, ainda com algum brilho rarefeiro, escapuliu-se da cena. Os mais atentos viram-no, nesse desembrulhar final, a ausentar-se rumo à (nunca rotineira) cortina(s) de agradecimentos.
Sentiu-se mal durante a representação mas, mesmo assim, fez questão de aguentar. Aguentou. Terá comentado em bastidores, dizem-me, o quando se sentia indisposto, como se atacado por um qualquer estado crítico de ansiedade. Mas mesmo assim, aguentou. Fez o que restava do espectáculo, suando profusamente, indisposto, e só no fim, já recolhido ao camarim, e quando parecia restabelecer-se um pouco da indisposição que o acometera, é que o coração – se é que foi o coração… - o atacou com brutalidade e definitivamente. E nada valeu o dispositivo médico chamado à pressa para o acudir, nem as manobras de reanimação que ainda lograram fazer-lhe. O Jorge desmaiou e desse desmaio não teve regresso. Antes da morte se ter cruzado com ele, no camarim e nos braços dos seus camaradas, e quando parecia que o mau bocado estava a passar, terá perguntado se se haviam notado as dificuldades por que passara durante a função. E terá ficado descansado ao ser-lhe dito que não.
Envelhecemos na exacta medida – coisa matematicamente espectável, mas só isso – da partida dos nossos amigos. Alguém o disse, assim, com esta claridade, e eu, na minha infinita ignorância, creio que ninguém o terá dito tão bem, tão acertadamente.
Por isso, mas não apenas por isso, também eu me apercebi nesse gesto de despedida sem aviso, uma proximidade mais óbvia com o meu dia, seja ele qual for ou quando for. Envelheci, fiquei mais velho, com este adeus desavisado. E ainda que fosse assinalado com a maior antecedência. Contudo, a morte é mais brutal quando chega em pezinhos de lã, e laça a mais improvável das suas vítimas. Nesse momento, sentimos que caminhamos mais rápido para o nosso ocaso.
Shakespeare escreveu na comédia NOITE DE REIS, através de uma das suas personagens, para exemplificar a quantidade de tempo que havia sido consumida entre uma cena e outra, que as voltas que o relógio dera durante esse período, não era uma coisa em abstracto, mas sim, uma coisa, uma distância real, em direcção ao adeus final de cada uma das personagens presentes na cena.
O tempo é, por isso, não apenas o espaço percorrido, mas o espaço percorrido numa determinada direcção, e as pessoas que, percorrido o caminho, o abandonam.
Hoje, sinto-me francamente mais velho.
Quero aproveitar este espaço e deixar aqui um aceno cúmplice ao camarada Jorge Vasques, à sua memória, e neste aceno, lembrar os tantos camaradas que nos foram deixando mais sozinhos, nos caminhos que a vida nos obriga a trilhar.
Até sempre, Jorge.
António Durães
5, 6, 10, 11, 12, 13 de Fevereiro | 21h30
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