Este é o blogue de um espectáculo de teatro. É importante retê-lo porque a necessidade de o fazer se prende à utilidade particular a que se destina: na espuma dos dias o que é essencial vai-se como isso mesmo, espuma. E Letra M fala da vida, da criatura humana, porque fala da inevitabilidade do fim da vida, de como é irremediável a morte.
O espectáculo debruça-se sobre um desejo de eternidade utópico que persegue o homem desde os primórdios da razão. Mas não o faz no plano de uma ambição de rivalizar com os deuses ou com Deus. Fá-lo no plano do amor, de um desejo de viver o amor como um absoluto, de uma vontade de racionalidade fundada na fraternidade e na alegria, essas qualidades que se provam como reais e que a vida também pode conter, por estranho que o pareça nas circunstâncias actuais, imersos na destruição, na fome, na miséria e pior ainda, nos países ditos civilizados, na pior das venalidades e corrupção generalizados.
Letra M pretende fazer o que o texto que dá lugar à representação propõe: um debate de argumentos, uma luta de ideias, um combate por perspectivas válidas fundado nas possibilidades perscrutadas e válidas do humano, da humanidade livre potencial. É essa a proposta que vos fazemos: bloguem connosco sobre as matérias que a peça propõe. São vitais e mesmo vindas de um remoto 1401, altura da sua escrita, nunca gritaram tão alto as suas verdades. O que não está na ordem do dia. Falo das verdades e da Verdade, esse fenómeno que as camadas de realidade ocultam como um ouro que se não alcança. Já Brecht falava das cinco dificuldades de a dizer, à verdade, risco de vida fazê-lo, num tempo em que ela parece impossível e a mentira rende o que a verdade impede e dói, avessa ao lucro explorador e brutal.
Lucremos com as ideias que nos propõe Saaz, pensamento em acção emergindo no fogo da luta. Sigamos Saaz, esse humanista antes do tempo, desafiador do Deus único, ausência inatingível. Tentemo-las aqui, às ideias carregadas de dúvida e propósitos futuros, e a partir do modelo do diálogo, um diálogo de monólogos contrapostos.
É isso: querem contracenar connosco os vossos monólogos críticos e fraternos?


Fernando Mora Ramos


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28 de outubro de 2009

Obrigado

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Fernando, obrigado pelo texto e sobretudo pelo espectáculo. Afrontar a morte quase nunca vai bem com o ofício de ser português mas isso acontece-nos por vezes com alguma gente com alguma escrita (o Herberto: «…ficar certo com a vírgula no meio da luz…») e acontece-nos com o teu teatro certo. A «vitória» dos ouropéis e homilias de «quem castiga bem aconselha bem» já a sabemos resta-nos a «honra» de os mandar à merda. Tudo vai certo o espaço e a fala as belas pinturas a inteligência: fui bem-vindo às Caldas. Adorei a morte em ataque cardíaco.

Um abraço,
Jorge Luz

17 de outubro de 2009

Curiosa descoincidência

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Saaz e Vicente

No teatro aquilo que é acidental tem porventura muito de electivo – os acidentes repetem-se no mesmo território. Andamos muitas vezes pelas mesmas águas e reparamos, a dada altura da nossa própria maturidade, que regressamos a temas, que há polémicas que vão reencontrando outro espaço e outro tempo para se afirmarem e que as coisas mudam mas também permanecem.

Se há história difícil de entender é a do corpo, história da sua evolução orgânica e das interdições associadas à sua natureza. O corpo, ao que parece, e as suas linguagens imediatas, corpo máquina, corpo erótico, corpo digestivo, corpo reprimido, mesmo numa altura em que está em causa a relação natural com o que é – da prótese ao automóvel, do computador à necessidade de exercícios para que o corpo seja corpo, tudo o converte numa espécie de corpo descorporificado, ou, nas paisagens do mercado, em super-corpo –, fazem as suas partidas inesperadas e talvez sejam as doenças fatais, as que permanecem sem cura (por muita medicina campeã que se premeie com mais ou menos indústria farmacêutica envolvida), as que traduzem a sua continuada e evidente precariedade.

Só mesmo no reino ofuscante da publicidade somos eternos e justamente no momento do consumo, no acto de consumir. Aí, com os dentes no chocolate, ou envergando a última T Shirt tatuada da moda, passamos a fronteira da nossa precariedade e entramos no universo perene das marcas – estas nunca afirmam nem origens, a não ser para encontrar uma remota nobreza original, nem o futuro, sempre mais radioso que as estrelas no firmamento de sempre. É esta a linguagem dominante associada ao corpo (a Igreja há muito que perdeu a guerra e ele há Virgens tão sensuais, tão capazes de conceber com pecado!).

O que nos dizem é que nós seremos cada vez mais jovens, mesmo que esse cada vez não aponte para um regresso ao berço e antes nos situe sempre numa espécie de idade da disponibilidade potencial erótica. Tudo muito envolvido em celofane cinético e em irrealidade etérea, mas cheia de primeiro plano, de hiper-realidade. A sexualidade, essa mesma, a que conhecemos de toque, mãos e o que mais for, convoca sempre humidades, cheiros e uma poesia muito própria, a poesia imperfeita do próprio corpo associado também, e isso é uma verdade extraordinária, às suas limitações ou liberdades culturais. Nada nos é dito sobre o corpo detrás da burka e quando o juízo que se lhe dirige o faz apenas à interdição, juízo do lado de cá, ele julga sumariamente o que não aprofunda. O que se passará sob o extenso véu, dos pés à cabeça, que seja radicalmente diferente do que sucede a quem o expõe? O que sabemos é que o excesso de exposição deserotiza, remete para a esfera do etéreo o que é suado e intenso, fala da “essência” da coisa e não da “indecência” – esses perfumes que matam o desejo com a sua química kitsch ingramável, o pinheirinho do taxista no espelho retrovisor a disfarçar o tabaco omnipresente -, síntese estilizada da coisa, e não do odor da coisa, de como ela é sendo o que é, com o disfarce primário da coisa em si despida de teorias mas plena de literatura literal. E é aí que a indústria, a quem todas as formas de impotência interessam, como interessam todas as formas da potência, entra. E entra para acumular lucros. O lucro, o mercado, quer multiplicar a libido por uma infinidade de possibilidades de com ela lucrar deslibidinizando-nos e ultralibidinizando-nos no mesmo gesto, como um movimento irracional e absurdo – nada melhor para o mercado que a irracionalidade e o absurdo, as trevas e as seitas. As práticas do corpo a ele associadas vivem obviamente da insatisfação alimentada. É essa condição que move para o próximo acto e torna o negócio uma exploração de lógicas de dependência. O que era natural – e esta natureza já é a segunda, plena de fantasias, porque somos ficcionadores por natureza, corpo/cabeça – torna-se pura manipulação e dependência.

Mas não era por aqui que queria vir. O António Durães, actor notável, referindo-se no blogue de Letra M (espectáculo do Teatro da Rainha, com cenários e pinturas de João Vieira a partir de Saaz) a Gil Vicente e Saaz, ao Breve sumário da história de Deus e ao Lavrador da Boémia, repara nesta coisa extraordinária: em Vicente, Eva comendo o fruto cai em pecado e condena-nos à vida como ela é em resultado de ao fazê-lo ter parido a maléfica Morte, essa personagem do Mal. O que tem uma forte carga imagética e simbólica associada e cria, imagens convocadas pelas palavras, uma fantasmagoria monstruosa associada ao próprio parto da Morte, imaginável apenas como cena mítica, violenta e incompreensível apesar de toda a ingenuidade que a suporta, ingenuidade mesmo no sentido pictórico. Já em Saaz, autor boémio – não confundir com copos e noitadas – do século XV e grande clássico da literatura germânica, a Morte, sendo personagem, é concebida como função, como instrumento da ordem de Deus.

Esta diferença diz tudo sobre as mentalidades respectivas: se em Vicente, que é um conhecedor profundo da teologia da época, a imagem remete para uma espécie de ainda infância do acto de imaginar submetida a uma hierarquia inamovível, no autor germânico já estamos em plena polémica. Se a Morte é negativa e é instrumento de Deus, se é pura destruição como pode ser ela instrumento de Deus? Será instrumento de um Deus que com ela se confunde, de um Deus de Morte. E o facto de abrir a polémica diz tudo, diz tudo da propensão de uma cultura para o rito repetidor e sagrado e de outra para a razão polémica, para a possibilidade da iconoclastia, salutar e libertadora, vanguardista. Pois é, há constantes na cultura que passando o nosso tempo de vida, falarão do mesmo, da propensão de uns para o respeito hierárquico – e o que é o “ambiente salazarento” que vivemos? -, e de outros para o pensamento, o debate vital, lá onde a modernidade começou a sua actualidade ainda presente.

Fernando Mora Ramos

15 de outubro de 2009

Por curiosa coincidência

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Por curiosa coincidência, caprichos da vida, artística e por artisitificar, num texto (e num espectáculo em que estou igualmente envolvido) posterior quase um século a este de Sazz, Gil Vicente em Breve Sumário Da História de Deus, anuncia a Morte, a Morte-personagem, como sendo o resultado da relação entre a serpente tentadora (em Vicente, Satanás disfarçado de serpente, enviada por Lúcifer, o cappo) e Eva, a primeira mulher. Tentada e seduzida sem remissão depois de comer a maçã do pecado e de a ter dado a comer a Adão, Eva concebeu e deu à luz, voilà, a Morte, essa «triste paridura», como a descreve, desiludida, quando confrontada pelo Anjo, com a sua desonra.

Diz Eva ao Anjo:

Senhor sabereis
dizendo em soma o que me requereis
que eu concebi neste meu spirito
aqueles enganos do anjo maldito
e assi concebida agora vereis
o meu apetito

digo que prenhe minh'alma e vida
assi concebida do verbo corrupto
desejei de prenhe fartar-me do fruto
da árvore santa per Deos defendida.
E como comi

(Aqui aparece a Morte.)

vedes ali senhor que pari
vedes a minha triste paridura
essa é a filha da mãe sem ventura
isto naceu da triste de mi
por nossa tristura.

Em Sazz, há a pergunta que sabe a resposta:

Diz a Morte:

Perguntas-nos de onde vimos. Vimos do paraíso terrestre. Foi lá que Deus nos criou quando disse: no dia em que comerdes deste fruto, nesse dia morrereis.

Duas maneiras diferentes para, à luz do Deus da Bíblia, do Livro do Génesis, marcar o aparecimento da Morte na história da Vida. Com um século de diferença.

António Durães

Pintura de João Vieira para "O Lavrador da Boémia"

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Senhor, em toda a tua criação não há nada de mais terrificante, de mais vil, de mais injusto, de mais amargo do que a Morte.

Ela entristece, ela destrói todo o teu reino terrestre.

Deixa o que é nocivo, velho, doente, inútil e leva os bons, os que têm préstimo.

Julga, Senhor, julga este falso juiz.

O Lavrador

14 de outubro de 2009

Duas ou três coisas sobre a peça

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1. Passado já um longo período de apreensão com os trabalhos que vinha vendo, foi com GRANDE EMOÇÃO, e uma alegria muito interior, que vi este trabalho pelo aspecto qualitativo, na sua conjugação do total apresentado:

a) a excelente escolha dos actores e a sua actuação;

b) o espaço denso - leve – TEATRO – em que o espaço sonoro suaviza como uma manto de veludo;

c) a relação espaço – actores e a sua projecção da palavra interiorizada – brotada com uma intensidade muito equilibrada em todas as suas projecções;

d) os níveis superior (janela, altar, bancada…) e inferior (poço interior e exterior) são sublinhados de uma leveza consistente, bem marcante…

e) a relação actor – actor, as peças móveis de afastamento físico em permanente dialogo, as palavras (TEATRO) e o silêncio, com direcções, olhares e expressões intensamente direccionados / ligados por um fino fio invisível impressionantemente resistente de contenção…

…isto são apontamento que tirei logo no fim, com isto vou fazer um pequeno texto, porque tenho que escrever sobre o que vi-ouvi-digeri- mais do que sentir…

Mais uma vez um GRANDA OBRIGADO pela passada noite de TEATRO de sexta-feira.


Acácio Carreira

7 de outubro de 2009

Durante meia dúzia de sessões

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Durante meia dúzia de sessões, por razões de calendarização do trabalho, ensaiámos no Porto, no Convento de S. Bento da Vitória, (onde, aliás, o espectáculo será apresentado em Fevereiro do próximo ano), numa pequena sala por habitar, mas que estava disponível para o trabalho tipificado que necessitávamos realizar. Basicamente interessava proceder à manutenção das coisas conquistadas, sem objectivar a pesquisa. A sala, disseram-nos, era a sala do tribunal. Forrada com painéis de madeira a toda a volta, continuava a apresentar, bem notável, a memória de anteriores conflitos. Nem a argamassa moderna da reabilitação fundamental que se testemunhava nos tectos outrora (imagino) espampanantes, lhe retirara esse brilho de outrora, mas que ainda se sentia refulgir.

Por momentos, sendo uma sala de tribunal – mesmo que não consiga vislumbrar que género de tribunal terá sido – a sala voltou a vibrar com os argumentos e contra-argumentos dos intervenientes, eu e o Paulo, que entregámos àquelas paredes, as reflexões que outrora lá terão sido produzidas, ainda para mais, sabendo-se aquele pedaço de edifício, incluído num complexo monástico.

Sentimo-nos, naquelas sessões, empurrados por tantas vozes que antes de nós se degladiaram, se combateram, até à sentença final.

E se aqui, na antiga Lavandaria, é Deus em Nuvem que fala, uma voz coada pelo amaciador do Carlos, passada a ferro pelo olhar do João, depois de devidamente passajada pelo Fernando, ali, no Porto, paredes meias com as famílias dos que, duas casas abaixo, esperavam na rua os resultados das audiências no TIC, sentimos as agulhas da concritude, do tudo ou nada.


António Durães

Margarida

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Figura de Margarida (Vídeo)
Cristina do Aido

(c) Paulo Nuno

O Lavrador

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Paulo Calatré Lavrador

(c) Paulo Nuno

A Morte

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António Durães Morte

(c) Paulo Nuno

"Si La Muerte" de Miguel Huezo Mixco

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Si la muerte viene y pregunta por mí
haga el favor
de decirle que vuelva mañana
que todavía no he cancelado mis deudas
ni he terminado un poema
ni me he despedido de nadie
ni he ordenado mi ropa para el viaje
ni he llevado a su destino el encargo ajeno
ni he echado llave en mis gavetas
ni he dicho lo que debia decir a los amigos
ni he sentido el olor de la rosa que no ha nacido
ni he desenterrado mis raices
ni he escrito una carta pendiente
que si siquiera me he lavado las manos
ni he conocido un hijo
ni he empredido caminatas en países desconocidos
ni conozco los siete velos del mar
ni la canción del marino
Si la muerte viniera
diga por favor que estoy entendido
y que me haga una espera
que no he dado a mi novia ni un beso de despedida
que no he repartido mi mano con las de mi familia
ni he desempolvado los libros
ni he silbado la canción preferida
ni me he reconciliado con los enemigos
dígale que no he probado el suicidio
ni he visto libre a mi gente
dígale si viene que vuelva mañana
que no es que la tema pero si siquiera
he empezado a andar el camino.

6 de outubro de 2009

Letra M

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Letra M
Correm os dias para as fontes da água pura
Tropeçam nos grandes parques de vento
Param pasmados na queda simétrica de folhas outonais
E descem azulando pelas encostas do tempo
São como o peixe que foge para a boca do lobo
Como o silêncio desertificado
Como a hora que não chega
Ao momento da frontalidade revelada
Ficam pairando a deslizar num chão de dúvida

E como cegos clarividentes
No arame
Jogamos a pulsação no limite
Do batimento cardíaco
Este
É feito de sobressaltos cinéticos
Coração e olhos
Paisagem colorindo-se de angústias arroxeadas
E surrealistas
Pulso e olho
Cravados numa pista de mentiras floridas
No desfiladeiro das respirações
E o que se descortina
Mais que um pescador de Picasso
É talvez a linha desenhada a espátula e músculo de um M
Letra M
M de João e M de Maior
E Madalena

Como um arco-íris de sombras iluminadas corre nas veias
Sanguíneo
Um odor a pérolas e vermelho translúcido
Do esforço do fundo da mina
E do silêncio nocturno das pálpebras em desistência
Mas o que se vê
Para além de um bode mescla de diabo e anjo
São as asas do pão
A luz madrugadora do pão
Num longínquo limite do orbe
Lá onde fraternidade rima com luz e ouro
Canto tecido a simetria de olhares
O ouro de um gesto
O afecto
E as paredes
O choro da criança despertando para a ilimitada alegria da rosa

Saem as palavras em cardume numa transparência de aquário sem paredes
Um A quatro sem os limites de um A quatro
As palavras renascem como a erva daninha
Não pedem para vir à luz
Crescem do seu próprio sémen
E nada as detém
Nem a polícia
Nem a ordem suprema
Nem a pastosa verborreia do intelectual de serviço
Nem o último dogma da moda

Dos outros
Dos que votaram no monstro
E dos mesmos
Dos que votaram no monstro
Não vale a pena falar
Mantê-los à distância do medo que os torna homicidas e carne para canhão
Nos limites da folha
Para além da folha
No seu território de trocos lambe botas
E não desarmar

Apenas o que é húmido e terroso
Vive vital
E cheira ao que as mãos também têm
Afluências e cruzamentos inesperados
As mãos que são mães
E são portanto a raiz e o futuro
No lento labor da carícia
E sabemos quem o disse

Daqui
Desta janela de alentos
Um aceno
Para o meu amigo da porta de trás
Não importa a glória que vem embrulhada em laços de merda mundana
Nem sequer a portugalidade de campeões da ética vendida às instituições
E audiências
Apenas a gota
A humidade na raiz do verbo
A tecer na bactéria da forma o sentido do belo
Irmana o futuro no mesmo gesto coronário
E portanto
O horizonte
É quando nos calamos
E calando-nos fazemos
O que o tempo tece sem o dizer
Seja a pétala
Seja a faca a cortar o lume
No vértice do desejo

E por voltas que dê ao horizonte
À escama do peixe que não cessa de viver no colo da colina predilecta
Ao rigor encrespado da árvore assassinada
Ao lento soçobrar da vista a cair-me para as pontas dos dedos
Ao ritmo que entrevejo naquele rosto a fugir
Ao brilho da água a cruzar uma florescência nocturna
Na barriga lisa dos céus
À incandescência da lava sem apaziguamento à vista
Num rosto imprevisto e materno
Ao descaminho das pedras
Que servem quem nelas pega e as atira
À calma de uma superfície lagunar
Ao sulco que o barco desenha
Mesmo à paciência da poeira acumulada dos livros para sempre fechados
Mesmo para além do tudo que não é nada
E da aritmética utópica das areias
Nada pode destruir
O silêncio prometedor da raiz

Fernando Mora Ramos

A poesia do ferro e do aço contra a força de Hades

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No confronto entre a Morte e o Lavrador, sou manifestamente seduzido pela Morte. A sua postura, o carácter implacável e a natureza inapelável dos seus argumentos seduzem-me bem mais que a lamechice do Lavrador.

Contudo eu sou o Lavrador, tornei-me Lavrador. Quis o acaso que me visse na condição deste Lavrador frágil e vulnerável durante a produção desta peça. Um lavrador feito Orfeu, que desceu e continua a descer ao reino de Hades em busca da sua Eurídice, na ilusão de que a poderá ainda trazer de volta. Um lavrador-Orfeu a tentar com diligência adormecer Hades, Caronte e Cérbero sem sucesso. Um lavrador-Orfeu que desafia também ele as proibições e olha para trás. Nada mais parece restar senão a memória. Mas, nada, a serpente deu mesmo um golpe fatal na minha bela Eurídice.

Entre as minhas idas e vindas ao Hades tentei encontrar ânimo para sonificar esta “Letra M”.

The show must go on e a tarefa é ingrata. Hades não se comove, Caronte não adormece e Cérbero continua atento ao meu mais simples gesto. Tentam mesmo apanhar-me nos seus conluios. São insensíveis ao meu design sonoro.

Valho-me do cenário. O cenário do João Vieira, também ele desaparecido durante a produção da peça, é uma máquina sonora de valor musical inusitado. A fazer lembrar, visual e acusticamente, as conhecidas estruturas sonoras dos irmãos Baschet.

Hades volta a intrometer-se quando penso por que outros caminhos este trabalho poderia ter-se metido. Estou certo que o João Vieira haveria de ter simpatizado com a ideia de os percorrermos juntos.

O som do cenário está presente, de uma forma ou de outra, de modo mais ou menos exuberante e exclusivo, em todas as intervenções sonoras que a peça contém.

Tente o espectador perceber onde começa e onde acaba o cenário desta “Letra M”. Onde jazem as fronteiras entre o visual e o acústico?

No futuro, se Hades permitir, iremos explorar as virtudes deste cenário feito de ferro, de aço e de poesia.

Carlos Alberto Augusto

2 de outubro de 2009

Os actores são gente assim

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Os actores são gente assim.

Os ministros da cultura não entendem, não percebem o que não é imediatamente perceptável, nem o que está para lá do lógico.

O Jorge Vasques, actor, saiu de cena este sábado, no Porto, depois de ter terminado o espectáculo que representava. Quase no momento real do fade out que sobre si incidia.

Conta quem assistiu ao último espectáculo que representava no Teatro Helena Sá e Costa que, estranhamente, o Jorge não deixara que o pulsar daquela última luz, já só reflexão da luz derradeira, luz rebatida pelo chão, terminasse da sua explosão sobre si e, ainda com algum brilho rarefeiro, escapuliu-se da cena. Os mais atentos viram-no, nesse desembrulhar final, a ausentar-se rumo à (nunca rotineira) cortina(s) de agradecimentos.

Sentiu-se mal durante a representação mas, mesmo assim, fez questão de aguentar. Aguentou. Terá comentado em bastidores, dizem-me, o quando se sentia indisposto, como se atacado por um qualquer estado crítico de ansiedade. Mas mesmo assim, aguentou. Fez o que restava do espectáculo, suando profusamente, indisposto, e só no fim, já recolhido ao camarim, e quando parecia restabelecer-se um pouco da indisposição que o acometera, é que o coração – se é que foi o coração… - o atacou com brutalidade e definitivamente. E nada valeu o dispositivo médico chamado à pressa para o acudir, nem as manobras de reanimação que ainda lograram fazer-lhe. O Jorge desmaiou e desse desmaio não teve regresso. Antes da morte se ter cruzado com ele, no camarim e nos braços dos seus camaradas, e quando parecia que o mau bocado estava a passar, terá perguntado se se haviam notado as dificuldades por que passara durante a função. E terá ficado descansado ao ser-lhe dito que não.

Envelhecemos na exacta medida – coisa matematicamente espectável, mas só isso – da partida dos nossos amigos. Alguém o disse, assim, com esta claridade, e eu, na minha infinita ignorância, creio que ninguém o terá dito tão bem, tão acertadamente.

Por isso, mas não apenas por isso, também eu me apercebi nesse gesto de despedida sem aviso, uma proximidade mais óbvia com o meu dia, seja ele qual for ou quando for. Envelheci, fiquei mais velho, com este adeus desavisado. E ainda que fosse assinalado com a maior antecedência. Contudo, a morte é mais brutal quando chega em pezinhos de lã, e laça a mais improvável das suas vítimas. Nesse momento, sentimos que caminhamos mais rápido para o nosso ocaso.

Shakespeare escreveu na comédia NOITE DE REIS, através de uma das suas personagens, para exemplificar a quantidade de tempo que havia sido consumida entre uma cena e outra, que as voltas que o relógio dera durante esse período, não era uma coisa em abstracto, mas sim, uma coisa, uma distância real, em direcção ao adeus final de cada uma das personagens presentes na cena.

O tempo é, por isso, não apenas o espaço percorrido, mas o espaço percorrido numa determinada direcção, e as pessoas que, percorrido o caminho, o abandonam.

Hoje, sinto-me francamente mais velho.

Quero aproveitar este espaço e deixar aqui um aceno cúmplice ao camarada Jorge Vasques, à sua memória, e neste aceno, lembrar os tantos camaradas que nos foram deixando mais sozinhos, nos caminhos que a vida nos obriga a trilhar.

Até sempre, Jorge.

António Durães

1 de outubro de 2009

Pintura de João Vieira para o Lavrador da Boémia

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Olha os cavaleiros valorosos e fortes e grandes, os homens hábeis, surpreendentes, sábios.
Olha todas as criaturas.
Como são inteligentes! Como são belas! Como são fortes! Como estão vivas!
Todas irão morrer. Todas as raças humanas que existiram ou virão a existir passarão do ser ao não ser.
Tu não vais escapar-nos, mesmo que agora não o esperes.
Todos têm de partir”. É o que cada um deve dizer.

A Morte

30 de setembro de 2009

Pintura de João Vieira para o Lavrador da Boémia

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Chamam-me Lavrador, a pluma é a minha charrua. Vivo na Boémia.
Hei-de odiar-vos, hei-de resistir-vos, hei-de combater-vos sempre, porque me haveis arrancado a décima segunda letra, o jardim das minhas delícias, porque arrancastes a flor dos meus prazeres no prado do meu peito.
O Lavrador

23 de setembro de 2009

Monólogos do Lavrador 1

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Destruidora encarniçada dos povos, vós que desprezais tudo o que vive, assassina de todos os homens, vós Morte, maldita sejais. Meus Deus, que o Deus vosso criador vos odeie, que a má sorte vos assombre, que sejais amaldiçoada para todo o sempre. Que o medo, o infortúnio, as lamentações vos persigam onde quer que fordes. Que o céu, a terra, o Sol, a Lua, as estrelas, o mar, os lagos, as montanhas e os prados, os vales, os abismos do Inferno, tudo o que vive, tudo o que se mexe vos seja hostil, malevolente, vos maldiga para sempre. Que sejais para sempre desterrado, ó mais grave dos Deuses, por todos os homens e todas as criaturas. Demónio obsceno! Que a vossa má memória viva e perdure até ao fim dos tempos. Que a verdade da minha queixa seja gritada por mim e por toda a humanidade contorcendo as mãos, que seja gritada a minha acusação.

Lavrador da Boémia de Johannes Von Saaz

Conversa com João Vieira

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22 de setembro de 2009

João Vieira (1934-2009)

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O João Vieira partiu, o João como repetíamos e que era de outra geração mas que sentíamos perto, capaz de partilhar memórias e futuro, paciente e metódico, animador permanente de invenções e situações artísticas, cénicas e plásticas. Estávamos em pleno no estaleiro de Letra M, o espectáculo que arranca de um conjunto de pinturas que fez, a apontar para um retábulo, e do diálogo medieval O Lavrador da Boémia de Johannes Von Saaz. Pinturas, como que iluminuras em ponto grande, abrindo e fechando as palavras a ser ditas a cada futuro ofício para sentidos precisos e figurando por si, de modo abstracto e narrativo concreto, a cada painel e eram oito, a sua história, uma história global de precariedade humana, a morte em todos eles como protagonista.

Palavras que eram a sua paixão, palavras para compreender a realidade e para criar outras realidades, num constante deambular entre ambas, criando histórias, entre as suas origens – cada letra tem uma génese – e o seu devir, fazendo sonhar e pensar, ficcionar.

Continuar...

21 de setembro de 2009

Letra M

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Em 1401 Johannes Von Saaz perde inesperadamente a mulher, jovem mãe de um terceiro filho, e escreve, de rasgão, um longo diálogo atacando a Morte, na pele de um Lavrador, acusando-a de a levar prematuramente: “A charrua é a minha pluma”, diz. Margarida morre de parto e Johannes, autor, marido e personagem, rebela-se, quere-a de volta, questiona a lei da vida, não sabe nem quer viver sem ela. Letra M baseia-se na peça de Saaz, O Lavrador da Boémia, clássico de língua alemã antes da Alemanha, texto iluminado em noite de trevas. A peça, e o espectáculo, são um longo combate dialogado entre estas duas personagens, a Morte e o Lavrador.

O Lavrador, às portas do Reino da Morte, depois de um primeiro acto cego de raiva antagonista, desafia a Morte, instrumento de Deus, para um duelo verbal – no princípio pura violência física, suicida por amor – acusando-a de injustiça e negando o seu direito à existência. A poderosa Morte, espicaçada pelos inauditos ataques deste Lavrador, decide-se a “conhecê-lo” e a travar-se directamente de razões com aquele que, seja quem for, passa a marca e põe em causa a sua função e estatuto. Paradoxalmente, as virtudes do diálogo são essas que abrem para a possibilidade de uma fala entre iguais, desde Platão, e o debate democratiza-se, faz-se pensamentos e pensamento a emergir livre no confronto das razões. A diferença de meios e estaturas é total, mas David não derrotou Golias? O Lavrador não arreda pé da sua razão teimosa e não cala o seu amor, nem a memória fresca da sua intensidade indominável lhe permite sequer pausar, serenidade.

Do confronto emocionado e colérico inicial passa diálogo para o terreno da razão, num tempo já de apaziguamento relativo, voltando a “crise” amorosa amiúde ao terreno da luta e à evocação solidária. De um lado e de outro perpassam argumentos fundadores da própria humanidade e da natureza. O combate é duro e à razão emocionada do Lavrador, que defende o amor, a esperança, os prazeres, a amizade, os deveres da memória para com o Outro, o próprio esplendor da invenção do humano, corpo e espírito na perfeição de todos os órgãos dos sentidos, pensamentos, opõe-se a visão patriarcal e “técnica” da Morte: “se não matássemos desde que a humanidade existe a terra não seria habitável”.

Se o Lavrador é combativo e as suas razões autênticas, fundadas no amor mas também na necessidade de superar a dor insuportável que o paralisa, a Morte não é pura destruição, nem versão demoníaca explicável por malévola condição genética, o que seria óbvio e fácil. Figura complexa, nela vemos associados o saber erudito, o arsenal das suas referências é enciclopédico, a um conservadorismo monoteísta que, rapidamente, desliza para a visão científica, numa atitude distante de monarca absoluto e omnisciente. Instrumento de Deus por certo, mas por certo também ambicionando a mesma omnipotência e omnipresença, o que aliás materializa a meio caminho, “algures” que é, sem “forma definida” e “força” que afinal está presente por toda a parte, já que o orbe terrestre é o seu estaleiro diário. Por vezes sentimo-nos diante de um déspota esclarecido, outras vezes perante um pai severo, outras ainda perante um cientista de ciência experimentada e ecológica, reconstrutora da vida, o que é o mais difícil de entender: a morte como origem da própria vida. Complexa figura de indefinida forma, Senhor poderoso, monstro de humores malévolos, qual deus grego egocêntrico – o Estado sou eu disse um Luís, todos os humanos me pertencem dirá este Rei -, não tem diante de si uma criatura menor, a humanidade desistente e paralisada pelo medo. O Lavrador tem uma costela de Prometeu e a sua dor converte-se, no processo dialogal e por contraponto sucessivo, em libertação, em nova possibilidade de luz. A sua agilidade mental leva-o a argumentos tão emancipadores que chega a pensar o humano como capaz de ir além de Deus – não esqueçamos que se trata de um texto de 1401. O que a Morte jamais dirá, funcionária escrupulosa e vitalícia, de carreira sem altos nem baixos, titular absoluto e único de um cargo e tarefa únicos.

Letra M é um espectáculo de teatro, é teatro e é interdisciplinar como o teatro. Ao texto inicial associaram-se, no arranque do projecto como ponto de partida, as pinturas de João Vieira, cenógrafo e um mestre da pintura contemporânea portuguesa a quem a literatura sempre moveu. Os painéis do espectáculo constituem uma síntese da actividade da Morte e retratam o momento de partida do drama dialogal, a morte de Margarida pela Morte levada, rodeada de outros feitos dessa Grande Empresa, a morte espalhada pelo planeta. No espaço da ex-lavandaria do Hospital Termal instalámos o Palácio da Morte, uma fábrica onde este passador tem a sua alfândega, o seu parlamento, a sua sala de actos e onde reside, onde tem o seu bunker, inexpugnável. Espaço que no Porto – é uma co-produção com o TNSJ, será em Fevereiro do próximo ano, no Convento de São Bento da Vitória, no seu magnífico claustro, lugar assombroso em que as memórias que vamos fazer futuro se vão cruzar com o que as pedras deste claustro e do convento em si contam – depois de Ricardo Pais, um grande Director, com quem sempre colaborámos de modo elevado e eficaz, temos agora o prazer de o fazer sob a visão afectuosa, esclarecida e criativa, de Nuno Carinhas, a quem queremos aqui desejar um grande projecto à frente deste único Teatro Nacional com projecto de sê-lo.

É nos espaços referidos que o combate se travará, um combate a que ninguém escapa na terra, e é aí que os espectadores poderão seguir a intensa polémica numa espécie de arena parlamento, espaço de câmara e duelo. Se a retórica e o fio lógico dos argumentos compõem as falas deste diálogo de monólogos contrapostos, o que é mais verdade é que ao rigor da prosa jurídica se junta, inextrincavelmente, a voz amorosa e poética daquele que quase morre de amor, o próprio Johannes, de Saaz, o escritor em Lavrador.

Letra M é um longo poema de amor e simultaneamente uma canção desesperada como referiu o João Vieira, uma vez, lembrando Neruda. Este espectáculo é-lhe dedicado por todos nós, seus admiradores, ao homem rigoroso, ao artesão, ao criador, ao homem de princípios, ao transmontano mais cosmopolita que conhecemos, agora que infelizmente e tal como Margarida, partiu para paragens remotas e próximas. Lembrar-nos-emos dele em cada ofício de cena porque lá estará connosco, nos gestos que pintaram as telas, na interpelação das palavras e no seu sorriso, descortinado certamente no vigor cromático das figuras desenhadas, rasgadas a músculo e visão, impressionantes de rigor, força e aviso.

Fernando Mora Ramos



 


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