O Lavrador, às portas do Reino da Morte, depois de um primeiro acto cego de raiva antagonista, desafia a Morte, instrumento de Deus, para um duelo verbal – no princípio pura violência física, suicida por amor – acusando-a de injustiça e negando o seu direito à existência. A poderosa Morte, espicaçada pelos inauditos ataques deste Lavrador, decide-se a “conhecê-lo” e a travar-se directamente de razões com aquele que, seja quem for, passa a marca e põe em causa a sua função e estatuto. Paradoxalmente, as virtudes do diálogo são essas que abrem para a possibilidade de uma fala entre iguais, desde Platão, e o debate democratiza-se, faz-se pensamentos e pensamento a emergir livre no confronto das razões. A diferença de meios e estaturas é total, mas David não derrotou Golias? O Lavrador não arreda pé da sua razão teimosa e não cala o seu amor, nem a memória fresca da sua intensidade indominável lhe permite sequer pausar, serenidade.
Do confronto emocionado e colérico inicial passa diálogo para o terreno da razão, num tempo já de apaziguamento relativo, voltando a “crise” amorosa amiúde ao terreno da luta e à evocação solidária. De um lado e de outro perpassam argumentos fundadores da própria humanidade e da natureza. O combate é duro e à razão emocionada do Lavrador, que defende o amor, a esperança, os prazeres, a amizade, os deveres da memória para com o Outro, o próprio esplendor da invenção do humano, corpo e espírito na perfeição de todos os órgãos dos sentidos, pensamentos, opõe-se a visão patriarcal e “técnica” da Morte: “se não matássemos desde que a humanidade existe a terra não seria habitável”.
Se o Lavrador é combativo e as suas razões autênticas, fundadas no amor mas também na necessidade de superar a dor insuportável que o paralisa, a Morte não é pura destruição, nem versão demoníaca explicável por malévola condição genética, o que seria óbvio e fácil. Figura complexa, nela vemos associados o saber erudito, o arsenal das suas referências é enciclopédico, a um conservadorismo monoteísta que, rapidamente, desliza para a visão científica, numa atitude distante de monarca absoluto e omnisciente. Instrumento de Deus por certo, mas por certo também ambicionando a mesma omnipotência e omnipresença, o que aliás materializa a meio caminho, “algures” que é, sem “forma definida” e “força” que afinal está presente por toda a parte, já que o orbe terrestre é o seu estaleiro diário. Por vezes sentimo-nos diante de um déspota esclarecido, outras vezes perante um pai severo, outras ainda perante um cientista de ciência experimentada e ecológica, reconstrutora da vida, o que é o mais difícil de entender: a morte como origem da própria vida. Complexa figura de indefinida forma, Senhor poderoso, monstro de humores malévolos, qual deus grego egocêntrico – o Estado sou eu disse um Luís, todos os humanos me pertencem dirá este Rei -, não tem diante de si uma criatura menor, a humanidade desistente e paralisada pelo medo. O Lavrador tem uma costela de Prometeu e a sua dor converte-se, no processo dialogal e por contraponto sucessivo, em libertação, em nova possibilidade de luz. A sua agilidade mental leva-o a argumentos tão emancipadores que chega a pensar o humano como capaz de ir além de Deus – não esqueçamos que se trata de um texto de 1401. O que a Morte jamais dirá, funcionária escrupulosa e vitalícia, de carreira sem altos nem baixos, titular absoluto e único de um cargo e tarefa únicos.
Letra M é um espectáculo de teatro, é teatro e é interdisciplinar como o teatro. Ao texto inicial associaram-se, no arranque do projecto como ponto de partida, as pinturas de João Vieira, cenógrafo e um mestre da pintura contemporânea portuguesa a quem a literatura sempre moveu. Os painéis do espectáculo constituem uma síntese da actividade da Morte e retratam o momento de partida do drama dialogal, a morte de Margarida pela Morte levada, rodeada de outros feitos dessa Grande Empresa, a morte espalhada pelo planeta. No espaço da ex-lavandaria do Hospital Termal instalámos o Palácio da Morte, uma fábrica onde este passador tem a sua alfândega, o seu parlamento, a sua sala de actos e onde reside, onde tem o seu bunker, inexpugnável. Espaço que no Porto – é uma co-produção com o TNSJ, será em Fevereiro do próximo ano, no Convento de São Bento da Vitória, no seu magnífico claustro, lugar assombroso em que as memórias que vamos fazer futuro se vão cruzar com o que as pedras deste claustro e do convento em si contam – depois de Ricardo Pais, um grande Director, com quem sempre colaborámos de modo elevado e eficaz, temos agora o prazer de o fazer sob a visão afectuosa, esclarecida e criativa, de Nuno Carinhas, a quem queremos aqui desejar um grande projecto à frente deste único Teatro Nacional com projecto de sê-lo.
É nos espaços referidos que o combate se travará, um combate a que ninguém escapa na terra, e é aí que os espectadores poderão seguir a intensa polémica numa espécie de arena parlamento, espaço de câmara e duelo. Se a retórica e o fio lógico dos argumentos compõem as falas deste diálogo de monólogos contrapostos, o que é mais verdade é que ao rigor da prosa jurídica se junta, inextrincavelmente, a voz amorosa e poética daquele que quase morre de amor, o próprio Johannes, de Saaz, o escritor em Lavrador.
Letra M é um longo poema de amor e simultaneamente uma canção desesperada como referiu o João Vieira, uma vez, lembrando Neruda. Este espectáculo é-lhe dedicado por todos nós, seus admiradores, ao homem rigoroso, ao artesão, ao criador, ao homem de princípios, ao transmontano mais cosmopolita que conhecemos, agora que infelizmente e tal como Margarida, partiu para paragens remotas e próximas. Lembrar-nos-emos dele em cada ofício de cena porque lá estará connosco, nos gestos que pintaram as telas, na interpelação das palavras e no seu sorriso, descortinado certamente no vigor cromático das figuras desenhadas, rasgadas a músculo e visão, impressionantes de rigor, força e aviso.
1 comentários on "Letra M"
A não perder!!!
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