Saaz e Vicente
No teatro aquilo que é acidental tem porventura muito de electivo – os acidentes repetem-se no mesmo território. Andamos muitas vezes pelas mesmas águas e reparamos, a dada altura da nossa própria maturidade, que regressamos a temas, que há polémicas que vão reencontrando outro espaço e outro tempo para se afirmarem e que as coisas mudam mas também permanecem.
Se há história difícil de entender é a do corpo, história da sua evolução orgânica e das interdições associadas à sua natureza. O corpo, ao que parece, e as suas linguagens imediatas, corpo máquina, corpo erótico, corpo digestivo, corpo reprimido, mesmo numa altura em que está em causa a relação natural com o que é – da prótese ao automóvel, do computador à necessidade de exercícios para que o corpo seja corpo, tudo o converte numa espécie de corpo descorporificado, ou, nas paisagens do mercado, em super-corpo –, fazem as suas partidas inesperadas e talvez sejam as doenças fatais, as que permanecem sem cura (por muita medicina campeã que se premeie com mais ou menos indústria farmacêutica envolvida), as que traduzem a sua continuada e evidente precariedade.
Só mesmo no reino ofuscante da publicidade somos eternos e justamente no momento do consumo, no acto de consumir. Aí, com os dentes no chocolate, ou envergando a última T Shirt tatuada da moda, passamos a fronteira da nossa precariedade e entramos no universo perene das marcas – estas nunca afirmam nem origens, a não ser para encontrar uma remota nobreza original, nem o futuro, sempre mais radioso que as estrelas no firmamento de sempre. É esta a linguagem dominante associada ao corpo (a Igreja há muito que perdeu a guerra e ele há Virgens tão sensuais, tão capazes de conceber com pecado!).
O que nos dizem é que nós seremos cada vez mais jovens, mesmo que esse cada vez não aponte para um regresso ao berço e antes nos situe sempre numa espécie de idade da disponibilidade potencial erótica. Tudo muito envolvido em celofane cinético e em irrealidade etérea, mas cheia de primeiro plano, de hiper-realidade. A sexualidade, essa mesma, a que conhecemos de toque, mãos e o que mais for, convoca sempre humidades, cheiros e uma poesia muito própria, a poesia imperfeita do próprio corpo associado também, e isso é uma verdade extraordinária, às suas limitações ou liberdades culturais. Nada nos é dito sobre o corpo detrás da burka e quando o juízo que se lhe dirige o faz apenas à interdição, juízo do lado de cá, ele julga sumariamente o que não aprofunda. O que se passará sob o extenso véu, dos pés à cabeça, que seja radicalmente diferente do que sucede a quem o expõe? O que sabemos é que o excesso de exposição deserotiza, remete para a esfera do etéreo o que é suado e intenso, fala da “essência” da coisa e não da “indecência” – esses perfumes que matam o desejo com a sua química kitsch ingramável, o pinheirinho do taxista no espelho retrovisor a disfarçar o tabaco omnipresente -, síntese estilizada da coisa, e não do odor da coisa, de como ela é sendo o que é, com o disfarce primário da coisa em si despida de teorias mas plena de literatura literal. E é aí que a indústria, a quem todas as formas de impotência interessam, como interessam todas as formas da potência, entra. E entra para acumular lucros. O lucro, o mercado, quer multiplicar a libido por uma infinidade de possibilidades de com ela lucrar deslibidinizando-nos e ultralibidinizando-nos no mesmo gesto, como um movimento irracional e absurdo – nada melhor para o mercado que a irracionalidade e o absurdo, as trevas e as seitas. As práticas do corpo a ele associadas vivem obviamente da insatisfação alimentada. É essa condição que move para o próximo acto e torna o negócio uma exploração de lógicas de dependência. O que era natural – e esta natureza já é a segunda, plena de fantasias, porque somos ficcionadores por natureza, corpo/cabeça – torna-se pura manipulação e dependência.
Mas não era por aqui que queria vir. O António Durães, actor notável, referindo-se no blogue de Letra M (espectáculo do Teatro da Rainha, com cenários e pinturas de João Vieira a partir de Saaz) a Gil Vicente e Saaz, ao Breve sumário da história de Deus e ao Lavrador da Boémia, repara nesta coisa extraordinária: em Vicente, Eva comendo o fruto cai em pecado e condena-nos à vida como ela é em resultado de ao fazê-lo ter parido a maléfica Morte, essa personagem do Mal. O que tem uma forte carga imagética e simbólica associada e cria, imagens convocadas pelas palavras, uma fantasmagoria monstruosa associada ao próprio parto da Morte, imaginável apenas como cena mítica, violenta e incompreensível apesar de toda a ingenuidade que a suporta, ingenuidade mesmo no sentido pictórico. Já em Saaz, autor boémio – não confundir com copos e noitadas – do século XV e grande clássico da literatura germânica, a Morte, sendo personagem, é concebida como função, como instrumento da ordem de Deus.
Esta diferença diz tudo sobre as mentalidades respectivas: se em Vicente, que é um conhecedor profundo da teologia da época, a imagem remete para uma espécie de ainda infância do acto de imaginar submetida a uma hierarquia inamovível, no autor germânico já estamos em plena polémica. Se a Morte é negativa e é instrumento de Deus, se é pura destruição como pode ser ela instrumento de Deus? Será instrumento de um Deus que com ela se confunde, de um Deus de Morte. E o facto de abrir a polémica diz tudo, diz tudo da propensão de uma cultura para o rito repetidor e sagrado e de outra para a razão polémica, para a possibilidade da iconoclastia, salutar e libertadora, vanguardista. Pois é, há constantes na cultura que passando o nosso tempo de vida, falarão do mesmo, da propensão de uns para o respeito hierárquico – e o que é o “ambiente salazarento” que vivemos? -, e de outros para o pensamento, o debate vital, lá onde a modernidade começou a sua actualidade ainda presente.
1 comentários on "Curiosa descoincidência"
NOTÁVEL.
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