Este é o blogue de um espectáculo de teatro. É importante retê-lo porque a necessidade de o fazer se prende à utilidade particular a que se destina: na espuma dos dias o que é essencial vai-se como isso mesmo, espuma. E Letra M fala da vida, da criatura humana, porque fala da inevitabilidade do fim da vida, de como é irremediável a morte.
O espectáculo debruça-se sobre um desejo de eternidade utópico que persegue o homem desde os primórdios da razão. Mas não o faz no plano de uma ambição de rivalizar com os deuses ou com Deus. Fá-lo no plano do amor, de um desejo de viver o amor como um absoluto, de uma vontade de racionalidade fundada na fraternidade e na alegria, essas qualidades que se provam como reais e que a vida também pode conter, por estranho que o pareça nas circunstâncias actuais, imersos na destruição, na fome, na miséria e pior ainda, nos países ditos civilizados, na pior das venalidades e corrupção generalizados.
Letra M pretende fazer o que o texto que dá lugar à representação propõe: um debate de argumentos, uma luta de ideias, um combate por perspectivas válidas fundado nas possibilidades perscrutadas e válidas do humano, da humanidade livre potencial. É essa a proposta que vos fazemos: bloguem connosco sobre as matérias que a peça propõe. São vitais e mesmo vindas de um remoto 1401, altura da sua escrita, nunca gritaram tão alto as suas verdades. O que não está na ordem do dia. Falo das verdades e da Verdade, esse fenómeno que as camadas de realidade ocultam como um ouro que se não alcança. Já Brecht falava das cinco dificuldades de a dizer, à verdade, risco de vida fazê-lo, num tempo em que ela parece impossível e a mentira rende o que a verdade impede e dói, avessa ao lucro explorador e brutal.
Lucremos com as ideias que nos propõe Saaz, pensamento em acção emergindo no fogo da luta. Sigamos Saaz, esse humanista antes do tempo, desafiador do Deus único, ausência inatingível. Tentemo-las aqui, às ideias carregadas de dúvida e propósitos futuros, e a partir do modelo do diálogo, um diálogo de monólogos contrapostos.
É isso: querem contracenar connosco os vossos monólogos críticos e fraternos?


Fernando Mora Ramos


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17 de outubro de 2009

Curiosa descoincidência


Saaz e Vicente

No teatro aquilo que é acidental tem porventura muito de electivo – os acidentes repetem-se no mesmo território. Andamos muitas vezes pelas mesmas águas e reparamos, a dada altura da nossa própria maturidade, que regressamos a temas, que há polémicas que vão reencontrando outro espaço e outro tempo para se afirmarem e que as coisas mudam mas também permanecem.

Se há história difícil de entender é a do corpo, história da sua evolução orgânica e das interdições associadas à sua natureza. O corpo, ao que parece, e as suas linguagens imediatas, corpo máquina, corpo erótico, corpo digestivo, corpo reprimido, mesmo numa altura em que está em causa a relação natural com o que é – da prótese ao automóvel, do computador à necessidade de exercícios para que o corpo seja corpo, tudo o converte numa espécie de corpo descorporificado, ou, nas paisagens do mercado, em super-corpo –, fazem as suas partidas inesperadas e talvez sejam as doenças fatais, as que permanecem sem cura (por muita medicina campeã que se premeie com mais ou menos indústria farmacêutica envolvida), as que traduzem a sua continuada e evidente precariedade.

Só mesmo no reino ofuscante da publicidade somos eternos e justamente no momento do consumo, no acto de consumir. Aí, com os dentes no chocolate, ou envergando a última T Shirt tatuada da moda, passamos a fronteira da nossa precariedade e entramos no universo perene das marcas – estas nunca afirmam nem origens, a não ser para encontrar uma remota nobreza original, nem o futuro, sempre mais radioso que as estrelas no firmamento de sempre. É esta a linguagem dominante associada ao corpo (a Igreja há muito que perdeu a guerra e ele há Virgens tão sensuais, tão capazes de conceber com pecado!).

O que nos dizem é que nós seremos cada vez mais jovens, mesmo que esse cada vez não aponte para um regresso ao berço e antes nos situe sempre numa espécie de idade da disponibilidade potencial erótica. Tudo muito envolvido em celofane cinético e em irrealidade etérea, mas cheia de primeiro plano, de hiper-realidade. A sexualidade, essa mesma, a que conhecemos de toque, mãos e o que mais for, convoca sempre humidades, cheiros e uma poesia muito própria, a poesia imperfeita do próprio corpo associado também, e isso é uma verdade extraordinária, às suas limitações ou liberdades culturais. Nada nos é dito sobre o corpo detrás da burka e quando o juízo que se lhe dirige o faz apenas à interdição, juízo do lado de cá, ele julga sumariamente o que não aprofunda. O que se passará sob o extenso véu, dos pés à cabeça, que seja radicalmente diferente do que sucede a quem o expõe? O que sabemos é que o excesso de exposição deserotiza, remete para a esfera do etéreo o que é suado e intenso, fala da “essência” da coisa e não da “indecência” – esses perfumes que matam o desejo com a sua química kitsch ingramável, o pinheirinho do taxista no espelho retrovisor a disfarçar o tabaco omnipresente -, síntese estilizada da coisa, e não do odor da coisa, de como ela é sendo o que é, com o disfarce primário da coisa em si despida de teorias mas plena de literatura literal. E é aí que a indústria, a quem todas as formas de impotência interessam, como interessam todas as formas da potência, entra. E entra para acumular lucros. O lucro, o mercado, quer multiplicar a libido por uma infinidade de possibilidades de com ela lucrar deslibidinizando-nos e ultralibidinizando-nos no mesmo gesto, como um movimento irracional e absurdo – nada melhor para o mercado que a irracionalidade e o absurdo, as trevas e as seitas. As práticas do corpo a ele associadas vivem obviamente da insatisfação alimentada. É essa condição que move para o próximo acto e torna o negócio uma exploração de lógicas de dependência. O que era natural – e esta natureza já é a segunda, plena de fantasias, porque somos ficcionadores por natureza, corpo/cabeça – torna-se pura manipulação e dependência.

Mas não era por aqui que queria vir. O António Durães, actor notável, referindo-se no blogue de Letra M (espectáculo do Teatro da Rainha, com cenários e pinturas de João Vieira a partir de Saaz) a Gil Vicente e Saaz, ao Breve sumário da história de Deus e ao Lavrador da Boémia, repara nesta coisa extraordinária: em Vicente, Eva comendo o fruto cai em pecado e condena-nos à vida como ela é em resultado de ao fazê-lo ter parido a maléfica Morte, essa personagem do Mal. O que tem uma forte carga imagética e simbólica associada e cria, imagens convocadas pelas palavras, uma fantasmagoria monstruosa associada ao próprio parto da Morte, imaginável apenas como cena mítica, violenta e incompreensível apesar de toda a ingenuidade que a suporta, ingenuidade mesmo no sentido pictórico. Já em Saaz, autor boémio – não confundir com copos e noitadas – do século XV e grande clássico da literatura germânica, a Morte, sendo personagem, é concebida como função, como instrumento da ordem de Deus.

Esta diferença diz tudo sobre as mentalidades respectivas: se em Vicente, que é um conhecedor profundo da teologia da época, a imagem remete para uma espécie de ainda infância do acto de imaginar submetida a uma hierarquia inamovível, no autor germânico já estamos em plena polémica. Se a Morte é negativa e é instrumento de Deus, se é pura destruição como pode ser ela instrumento de Deus? Será instrumento de um Deus que com ela se confunde, de um Deus de Morte. E o facto de abrir a polémica diz tudo, diz tudo da propensão de uma cultura para o rito repetidor e sagrado e de outra para a razão polémica, para a possibilidade da iconoclastia, salutar e libertadora, vanguardista. Pois é, há constantes na cultura que passando o nosso tempo de vida, falarão do mesmo, da propensão de uns para o respeito hierárquico – e o que é o “ambiente salazarento” que vivemos? -, e de outros para o pensamento, o debate vital, lá onde a modernidade começou a sua actualidade ainda presente.

Fernando Mora Ramos

1 comentários on "Curiosa descoincidência"

Anónimo disse...

NOTÁVEL.




 


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