No confronto entre a Morte e o Lavrador, sou manifestamente seduzido pela Morte. A sua postura, o carácter implacável e a natureza inapelável dos seus argumentos seduzem-me bem mais que a lamechice do Lavrador.
Contudo eu sou o Lavrador, tornei-me Lavrador. Quis o acaso que me visse na condição deste Lavrador frágil e vulnerável durante a produção desta peça. Um lavrador feito Orfeu, que desceu e continua a descer ao reino de Hades em busca da sua Eurídice, na ilusão de que a poderá ainda trazer de volta. Um lavrador-Orfeu a tentar com diligência adormecer Hades, Caronte e Cérbero sem sucesso. Um lavrador-Orfeu que desafia também ele as proibições e olha para trás. Nada mais parece restar senão a memória. Mas, nada, a serpente deu mesmo um golpe fatal na minha bela Eurídice.
Entre as minhas idas e vindas ao Hades tentei encontrar ânimo para sonificar esta “Letra M”.
The show must go on e a tarefa é ingrata. Hades não se comove, Caronte não adormece e Cérbero continua atento ao meu mais simples gesto. Tentam mesmo apanhar-me nos seus conluios. São insensíveis ao meu design sonoro.
Valho-me do cenário. O cenário do João Vieira, também ele desaparecido durante a produção da peça, é uma máquina sonora de valor musical inusitado. A fazer lembrar, visual e acusticamente, as conhecidas estruturas sonoras dos irmãos Baschet.
Hades volta a intrometer-se quando penso por que outros caminhos este trabalho poderia ter-se metido. Estou certo que o João Vieira haveria de ter simpatizado com a ideia de os percorrermos juntos.
O som do cenário está presente, de uma forma ou de outra, de modo mais ou menos exuberante e exclusivo, em todas as intervenções sonoras que a peça contém.
Tente o espectador perceber onde começa e onde acaba o cenário desta “Letra M”. Onde jazem as fronteiras entre o visual e o acústico?
No futuro, se Hades permitir, iremos explorar as virtudes deste cenário feito de ferro, de aço e de poesia.
Carlos Alberto Augusto
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