Este é o blogue de um espectáculo de teatro. É importante retê-lo porque a necessidade de o fazer se prende à utilidade particular a que se destina: na espuma dos dias o que é essencial vai-se como isso mesmo, espuma. E Letra M fala da vida, da criatura humana, porque fala da inevitabilidade do fim da vida, de como é irremediável a morte.
O espectáculo debruça-se sobre um desejo de eternidade utópico que persegue o homem desde os primórdios da razão. Mas não o faz no plano de uma ambição de rivalizar com os deuses ou com Deus. Fá-lo no plano do amor, de um desejo de viver o amor como um absoluto, de uma vontade de racionalidade fundada na fraternidade e na alegria, essas qualidades que se provam como reais e que a vida também pode conter, por estranho que o pareça nas circunstâncias actuais, imersos na destruição, na fome, na miséria e pior ainda, nos países ditos civilizados, na pior das venalidades e corrupção generalizados.
Letra M pretende fazer o que o texto que dá lugar à representação propõe: um debate de argumentos, uma luta de ideias, um combate por perspectivas válidas fundado nas possibilidades perscrutadas e válidas do humano, da humanidade livre potencial. É essa a proposta que vos fazemos: bloguem connosco sobre as matérias que a peça propõe. São vitais e mesmo vindas de um remoto 1401, altura da sua escrita, nunca gritaram tão alto as suas verdades. O que não está na ordem do dia. Falo das verdades e da Verdade, esse fenómeno que as camadas de realidade ocultam como um ouro que se não alcança. Já Brecht falava das cinco dificuldades de a dizer, à verdade, risco de vida fazê-lo, num tempo em que ela parece impossível e a mentira rende o que a verdade impede e dói, avessa ao lucro explorador e brutal.
Lucremos com as ideias que nos propõe Saaz, pensamento em acção emergindo no fogo da luta. Sigamos Saaz, esse humanista antes do tempo, desafiador do Deus único, ausência inatingível. Tentemo-las aqui, às ideias carregadas de dúvida e propósitos futuros, e a partir do modelo do diálogo, um diálogo de monólogos contrapostos.
É isso: querem contracenar connosco os vossos monólogos críticos e fraternos?


Fernando Mora Ramos


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2 de outubro de 2009

Os actores são gente assim


Os actores são gente assim.

Os ministros da cultura não entendem, não percebem o que não é imediatamente perceptável, nem o que está para lá do lógico.

O Jorge Vasques, actor, saiu de cena este sábado, no Porto, depois de ter terminado o espectáculo que representava. Quase no momento real do fade out que sobre si incidia.

Conta quem assistiu ao último espectáculo que representava no Teatro Helena Sá e Costa que, estranhamente, o Jorge não deixara que o pulsar daquela última luz, já só reflexão da luz derradeira, luz rebatida pelo chão, terminasse da sua explosão sobre si e, ainda com algum brilho rarefeiro, escapuliu-se da cena. Os mais atentos viram-no, nesse desembrulhar final, a ausentar-se rumo à (nunca rotineira) cortina(s) de agradecimentos.

Sentiu-se mal durante a representação mas, mesmo assim, fez questão de aguentar. Aguentou. Terá comentado em bastidores, dizem-me, o quando se sentia indisposto, como se atacado por um qualquer estado crítico de ansiedade. Mas mesmo assim, aguentou. Fez o que restava do espectáculo, suando profusamente, indisposto, e só no fim, já recolhido ao camarim, e quando parecia restabelecer-se um pouco da indisposição que o acometera, é que o coração – se é que foi o coração… - o atacou com brutalidade e definitivamente. E nada valeu o dispositivo médico chamado à pressa para o acudir, nem as manobras de reanimação que ainda lograram fazer-lhe. O Jorge desmaiou e desse desmaio não teve regresso. Antes da morte se ter cruzado com ele, no camarim e nos braços dos seus camaradas, e quando parecia que o mau bocado estava a passar, terá perguntado se se haviam notado as dificuldades por que passara durante a função. E terá ficado descansado ao ser-lhe dito que não.

Envelhecemos na exacta medida – coisa matematicamente espectável, mas só isso – da partida dos nossos amigos. Alguém o disse, assim, com esta claridade, e eu, na minha infinita ignorância, creio que ninguém o terá dito tão bem, tão acertadamente.

Por isso, mas não apenas por isso, também eu me apercebi nesse gesto de despedida sem aviso, uma proximidade mais óbvia com o meu dia, seja ele qual for ou quando for. Envelheci, fiquei mais velho, com este adeus desavisado. E ainda que fosse assinalado com a maior antecedência. Contudo, a morte é mais brutal quando chega em pezinhos de lã, e laça a mais improvável das suas vítimas. Nesse momento, sentimos que caminhamos mais rápido para o nosso ocaso.

Shakespeare escreveu na comédia NOITE DE REIS, através de uma das suas personagens, para exemplificar a quantidade de tempo que havia sido consumida entre uma cena e outra, que as voltas que o relógio dera durante esse período, não era uma coisa em abstracto, mas sim, uma coisa, uma distância real, em direcção ao adeus final de cada uma das personagens presentes na cena.

O tempo é, por isso, não apenas o espaço percorrido, mas o espaço percorrido numa determinada direcção, e as pessoas que, percorrido o caminho, o abandonam.

Hoje, sinto-me francamente mais velho.

Quero aproveitar este espaço e deixar aqui um aceno cúmplice ao camarada Jorge Vasques, à sua memória, e neste aceno, lembrar os tantos camaradas que nos foram deixando mais sozinhos, nos caminhos que a vida nos obriga a trilhar.

Até sempre, Jorge.

António Durães

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