Por curiosa coincidência, caprichos da vida, artística e por artisitificar, num texto (e num espectáculo em que estou igualmente envolvido) posterior quase um século a este de Sazz, Gil Vicente
Diz Eva ao Anjo:
Senhor sabereis
dizendo em soma o que me requereis
que eu concebi neste meu spirito
aqueles enganos do anjo maldito
e assi concebida agora vereis
o meu apetito
digo que prenhe minh'alma e vida
assi concebida do verbo corrupto
desejei de prenhe fartar-me do fruto
da árvore santa per Deos defendida.
E como comi
(Aqui aparece a Morte.)
vedes ali senhor que pari
vedes a minha triste paridura
essa é a filha da mãe sem ventura
isto naceu da triste de mi
por nossa tristura.
Em Sazz, há a pergunta que sabe a resposta:
Diz a Morte:
Perguntas-nos de onde vimos. Vimos do paraíso terrestre. Foi lá que Deus nos criou quando disse: no dia em que comerdes deste fruto, nesse dia morrereis.
Duas maneiras diferentes para, à luz do Deus da Bíblia, do Livro do Génesis, marcar o aparecimento da Morte na história da Vida. Com um século de diferença.
António Durães
1 comentários on "Por curiosa coincidência"
É de facto curiosa que esta distância geográfica, entre a então Boémia e o Portugal, entre um lá para cima mais frio e um cá para baixo mais de meio da rua, entre Saaz e Vicente, não sendo uma distância marcada pelas virtudes criativas das escritas, ambas surpreendentes, e porventura mais extraordinária e inventiva a de Vicente, corresponda no plano da cultura filosófica, das posições mentais a um verdadeiro fosso: se Vicente é quase um "animista" - na peça diga-se e não em matéria religiosa, e conhecida a sua posição contra as irracionalidades lucrativas no Sermão de Santarém, contra os padres demagogos justamente - e pinta uma Morte assustadora e "naif", verdadeiro papão para aprendizes de religião, já Saaz abre a polémica, põe em causa, abre uma porta ao ateísmo.
Interessante comparação António, e que muito diz da nossa especificidade, vem de longe ainda vai em Fátima.
E Vicente com isso? De facto muito pouco, a não ser especificamente no caso da peça e noutras peças em que a hierarquia celeste não é beliscada. Mas é de tal modo rico o universo das suas fantasias verbais e as imagens que convocam,que tudo a sua escrita supera.
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