Este é o blogue de um espectáculo de teatro. É importante retê-lo porque a necessidade de o fazer se prende à utilidade particular a que se destina: na espuma dos dias o que é essencial vai-se como isso mesmo, espuma. E Letra M fala da vida, da criatura humana, porque fala da inevitabilidade do fim da vida, de como é irremediável a morte.
O espectáculo debruça-se sobre um desejo de eternidade utópico que persegue o homem desde os primórdios da razão. Mas não o faz no plano de uma ambição de rivalizar com os deuses ou com Deus. Fá-lo no plano do amor, de um desejo de viver o amor como um absoluto, de uma vontade de racionalidade fundada na fraternidade e na alegria, essas qualidades que se provam como reais e que a vida também pode conter, por estranho que o pareça nas circunstâncias actuais, imersos na destruição, na fome, na miséria e pior ainda, nos países ditos civilizados, na pior das venalidades e corrupção generalizados.
Letra M pretende fazer o que o texto que dá lugar à representação propõe: um debate de argumentos, uma luta de ideias, um combate por perspectivas válidas fundado nas possibilidades perscrutadas e válidas do humano, da humanidade livre potencial. É essa a proposta que vos fazemos: bloguem connosco sobre as matérias que a peça propõe. São vitais e mesmo vindas de um remoto 1401, altura da sua escrita, nunca gritaram tão alto as suas verdades. O que não está na ordem do dia. Falo das verdades e da Verdade, esse fenómeno que as camadas de realidade ocultam como um ouro que se não alcança. Já Brecht falava das cinco dificuldades de a dizer, à verdade, risco de vida fazê-lo, num tempo em que ela parece impossível e a mentira rende o que a verdade impede e dói, avessa ao lucro explorador e brutal.
Lucremos com as ideias que nos propõe Saaz, pensamento em acção emergindo no fogo da luta. Sigamos Saaz, esse humanista antes do tempo, desafiador do Deus único, ausência inatingível. Tentemo-las aqui, às ideias carregadas de dúvida e propósitos futuros, e a partir do modelo do diálogo, um diálogo de monólogos contrapostos.
É isso: querem contracenar connosco os vossos monólogos críticos e fraternos?


Fernando Mora Ramos


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6 de outubro de 2009

Letra M


Letra M
Correm os dias para as fontes da água pura
Tropeçam nos grandes parques de vento
Param pasmados na queda simétrica de folhas outonais
E descem azulando pelas encostas do tempo
São como o peixe que foge para a boca do lobo
Como o silêncio desertificado
Como a hora que não chega
Ao momento da frontalidade revelada
Ficam pairando a deslizar num chão de dúvida

E como cegos clarividentes
No arame
Jogamos a pulsação no limite
Do batimento cardíaco
Este
É feito de sobressaltos cinéticos
Coração e olhos
Paisagem colorindo-se de angústias arroxeadas
E surrealistas
Pulso e olho
Cravados numa pista de mentiras floridas
No desfiladeiro das respirações
E o que se descortina
Mais que um pescador de Picasso
É talvez a linha desenhada a espátula e músculo de um M
Letra M
M de João e M de Maior
E Madalena

Como um arco-íris de sombras iluminadas corre nas veias
Sanguíneo
Um odor a pérolas e vermelho translúcido
Do esforço do fundo da mina
E do silêncio nocturno das pálpebras em desistência
Mas o que se vê
Para além de um bode mescla de diabo e anjo
São as asas do pão
A luz madrugadora do pão
Num longínquo limite do orbe
Lá onde fraternidade rima com luz e ouro
Canto tecido a simetria de olhares
O ouro de um gesto
O afecto
E as paredes
O choro da criança despertando para a ilimitada alegria da rosa

Saem as palavras em cardume numa transparência de aquário sem paredes
Um A quatro sem os limites de um A quatro
As palavras renascem como a erva daninha
Não pedem para vir à luz
Crescem do seu próprio sémen
E nada as detém
Nem a polícia
Nem a ordem suprema
Nem a pastosa verborreia do intelectual de serviço
Nem o último dogma da moda

Dos outros
Dos que votaram no monstro
E dos mesmos
Dos que votaram no monstro
Não vale a pena falar
Mantê-los à distância do medo que os torna homicidas e carne para canhão
Nos limites da folha
Para além da folha
No seu território de trocos lambe botas
E não desarmar

Apenas o que é húmido e terroso
Vive vital
E cheira ao que as mãos também têm
Afluências e cruzamentos inesperados
As mãos que são mães
E são portanto a raiz e o futuro
No lento labor da carícia
E sabemos quem o disse

Daqui
Desta janela de alentos
Um aceno
Para o meu amigo da porta de trás
Não importa a glória que vem embrulhada em laços de merda mundana
Nem sequer a portugalidade de campeões da ética vendida às instituições
E audiências
Apenas a gota
A humidade na raiz do verbo
A tecer na bactéria da forma o sentido do belo
Irmana o futuro no mesmo gesto coronário
E portanto
O horizonte
É quando nos calamos
E calando-nos fazemos
O que o tempo tece sem o dizer
Seja a pétala
Seja a faca a cortar o lume
No vértice do desejo

E por voltas que dê ao horizonte
À escama do peixe que não cessa de viver no colo da colina predilecta
Ao rigor encrespado da árvore assassinada
Ao lento soçobrar da vista a cair-me para as pontas dos dedos
Ao ritmo que entrevejo naquele rosto a fugir
Ao brilho da água a cruzar uma florescência nocturna
Na barriga lisa dos céus
À incandescência da lava sem apaziguamento à vista
Num rosto imprevisto e materno
Ao descaminho das pedras
Que servem quem nelas pega e as atira
À calma de uma superfície lagunar
Ao sulco que o barco desenha
Mesmo à paciência da poeira acumulada dos livros para sempre fechados
Mesmo para além do tudo que não é nada
E da aritmética utópica das areias
Nada pode destruir
O silêncio prometedor da raiz

Fernando Mora Ramos

1 comentários on "Letra M"

Anónimo disse...

Sou incapaz de dizer outra coisa que não seja LINDÍSSIMO! Obrigada por partilhar connosco os seus escritos




 


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