Correm os dias para as fontes da água pura
Tropeçam nos grandes parques de vento
Param pasmados na queda simétrica de folhas outonais
E descem azulando pelas encostas do tempo
São como o peixe que foge para a boca do lobo
Como o silêncio desertificado
Como a hora que não chega
Ao momento da frontalidade revelada
Ficam pairando a deslizar num chão de dúvida
E como cegos clarividentes
No arame
Jogamos a pulsação no limite
Do batimento cardíaco
Este
É feito de sobressaltos cinéticos
Coração e olhos
Paisagem colorindo-se de angústias arroxeadas
E surrealistas
Pulso e olho
Cravados numa pista de mentiras floridas
No desfiladeiro das respirações
E o que se descortina
Mais que um pescador de Picasso
É talvez a linha desenhada a espátula e músculo de um M
Letra M
M de João e M de Maior
E Madalena
Como um arco-íris de sombras iluminadas corre nas veias
Sanguíneo
Um odor a pérolas e vermelho translúcido
Do esforço do fundo da mina
E do silêncio nocturno das pálpebras em desistência
Mas o que se vê
Para além de um bode mescla de diabo e anjo
São as asas do pão
A luz madrugadora do pão
Num longínquo limite do orbe
Lá onde fraternidade rima com luz e ouro
Canto tecido a simetria de olhares
O ouro de um gesto
O afecto
E as paredes
O choro da criança despertando para a ilimitada alegria da rosa
Saem as palavras em cardume numa transparência de aquário sem paredes
Um A quatro sem os limites de um A quatro
As palavras renascem como a erva daninha
Não pedem para vir à luz
Crescem do seu próprio sémen
E nada as detém
Nem a polícia
Nem a ordem suprema
Nem a pastosa verborreia do intelectual de serviço
Nem o último dogma da moda
Dos outros
Dos que votaram no monstro
E dos mesmos
Dos que votaram no monstro
Não vale a pena falar
Mantê-los à distância do medo que os torna homicidas e carne para canhão
Nos limites da folha
Para além da folha
No seu território de trocos lambe botas
E não desarmar
Apenas o que é húmido e terroso
Vive vital
E cheira ao que as mãos também têm
Afluências e cruzamentos inesperados
As mãos que são mães
E são portanto a raiz e o futuro
No lento labor da carícia
E sabemos quem o disse
Daqui
Desta janela de alentos
Um aceno
Para o meu amigo da porta de trás
Não importa a glória que vem embrulhada em laços de merda mundana
Nem sequer a portugalidade de campeões da ética vendida às instituições
E audiências
Apenas a gota
A humidade na raiz do verbo
A tecer na bactéria da forma o sentido do belo
Irmana o futuro no mesmo gesto coronário
E portanto
O horizonte
É quando nos calamos
E calando-nos fazemos
O que o tempo tece sem o dizer
Seja a pétala
Seja a faca a cortar o lume
No vértice do desejo
E por voltas que dê ao horizonte
À escama do peixe que não cessa de viver no colo da colina predilecta
Ao rigor encrespado da árvore assassinada
Ao lento soçobrar da vista a cair-me para as pontas dos dedos
Ao ritmo que entrevejo naquele rosto a fugir
Ao brilho da água a cruzar uma florescência nocturna
Na barriga lisa dos céus
À incandescência da lava sem apaziguamento à vista
Num rosto imprevisto e materno
Ao descaminho das pedras
Que servem quem nelas pega e as atira
À calma de uma superfície lagunar
Ao sulco que o barco desenha
Mesmo à paciência da poeira acumulada dos livros para sempre fechados
Mesmo para além do tudo que não é nada
E da aritmética utópica das areias
Nada pode destruir
O silêncio prometedor da raiz
1 comentários on "Letra M"
Sou incapaz de dizer outra coisa que não seja LINDÍSSIMO! Obrigada por partilhar connosco os seus escritos
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